'Pejotização' avança em decisões do STF e gera reação de especialistas e membros da Justiça do Trabalho
PACTU
Representantes do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, além de movimentos populares, acadêmicos, advogados e sindicatos têm se articulado para reverter uma recente ofensiva movida por empresas no Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir a contratação de funcionários sem precisar assinar a carteira de trabalho, por meio de expedientes como a “pejotização”. O termo se refere à prática do trabalhador abrir uma empresa e ser contratado como pessoa jurídica, sem direitos trabalhistas básicos.
A reação ocorre após explodir o número de processos na Corte pedindo a revisão de decisões da Justiça trabalhista que condenam as fraudes em contratações que não respeitam a CLT. Como divulgou recentemente o Estadão, mais da metade das 6.148 reclamações movidas no Supremo neste ano são ações de empresas questionando decisões da Justiça do Trabalho. São ao todo 3.334 recursos do tipo protocolados no STF de janeiro a novembro, um número que vem aumentando a cada ano desde que foi aprovada a reforma trabalhista no governo Michel Temer.
Diante disso, 63 entidades divulgaram no último dia 13 uma carta aberta em defesa da atuação da Justiça do Trabalho para, dentre outros pontos, identificar e condenar os casos de fraudes trabalhistas. Os grupos seguem se mobilizando na tentativa de sensibilizar o Supremo, que já recebeu um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) para analisar essas práticas que vêm sendo adotadas por empregadores de todo o país e adotar um entendimento uniforme.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), por sua vez, vem realizando encontros com ministros do STF para sensibilizá-los sobre o tema e tem como meta falar com todos os integrantes da Corte sobre o assunto.
Especialistas da área ouvidos pelo Brasil de Fato veem por trás desse cenário uma ampliação indevida da interpretação do STF sobre terceirização do trabalho, além do uso indevido das reclamações, que são um tipo de recurso que só pode ser usado em casos muito específicos no Supremo. Na prática, ao utilizar esse mecanismo, os empregadores acabam pulando várias etapas do processo judicial para conseguir uma decisão do Supremo Tribunal Federal, que é a última instância do Poder Judiciário, ficando acima da Justiça do Trabalho.
Para estes especialistas, o risco é de que, na prática, as decisões do Supremo que invalidam os julgamentos de fraudes trabalhistas possam inviabilizar a atuação da Justiça do Trabalho e sonegar direitos sociais fundamentais aos trabalhadores.
“O Supremo Tribunal Federal tem acolhido essas reclamações, no meu entender, de forma completamente indevida e tem declarado que essas decisões ferem uma decisão do STF, que autorizou a terceirização de forma ampla. Mas isso não tem nada a ver com terceirização, é uma fraude na relação de emprego”, afirma o professor de Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP) Jorge Luiz Souto Maior.
Supremo e a reforma trabalhista
O imbróglio que preocupa hoje especialistas começou após a sanção da reforma trabalhista do governo Michel Temer, em 2017, que foi chancelada no ano seguinte em um julgamento do Supremo Tribunal Federal que autorizou a terceirização de todas as atividades de uma empresa, a chamada atividade-fim. Na prática, a decisão permite ao empregador não ter nenhum funcionário contratado formalmente via CLT e ter toda sua mão de obra contratada a partir de uma prestadora de serviços.
Com o passar do tempo, as empresas se aproveitaram das mudanças trazidas pela reforma para, cada vez mais, contratar os trabalhadores como prestadores de serviços, por meio de empresas individuais, ou mesmo por outros mecanismos de contratação, como as cooperativas.
Muitos destes trabalhadores acabaram recorrendo à Justiça do Trabalho, que, em vários casos, reconhece a pejotização como uma fraude à contratação e entende que há vínculo trabalhista entre o empregado e o empregador. Para tentar reverter isso, as empresas começaram a se aproveitar de um expediente que até então não era tão utilizado, as reclamações ao STF.
Parte dos ministros do tribunal tem adotado o entendimento de que, ao liberar a terceirização irrestrita e outros pontos da reforma trabalhista, também teriam sido autorizadas essas outras formas de contratação e que a Justiça do Trabalho não estaria atuando de acordo com isso, o que legitimaria o Supremo a decidir por meio das reclamações.
“O órgão máximo da Justiça especializada, o TST [Tribunal Superior do Trabalho], tem colocado alguns entraves em opções políticas chanceladas pelo Executivo e pelo Legislativo. Ao fim e ao cabo, a engenharia social que se busca e se tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção”, disse o ministro Gilmar Mendes em sessão da Segunda Turma do STF no dia 17 de outubro.
Em outro caso, o ministro Alexandre de Moraes mandou para a Justiça comum um processo no qual um motorista da Cabify havia conseguido o reconhecimento do vínculo empregatícios na Justiça do Trabalho. A empresa recorreu ao Supremo e o ministro entendeu que a relação dela com o motorista seria uma relação comercial e, por isso, não caberia a atuação da Justiça do Trabalho.
Outros ministros, por sua vez, têm entendido que não cabe reclamação constitucional para discutir este tema no Supremo e têm rejeitado estes recursos. Na prática, a situação tem provocado uma insegurança jurídica, o que fez o então procurador-geral da República, Augusto Aras, propor em setembro deste ano um Incidente de Assunção de Competência.
Este incidente é um procedimento para que o tema seja levado a debate pelo plenário do STF, e os ministros possam chegar a uma decisão única sobre como o Judiciário deve tratar os casos de pejotização e as reclamações que têm chegado à Corte. O julgamento deste incidente, porém, ainda não tem data para acontecer e aguarda uma definição do próprio Supremo.
Ao propor este debate, Aras pontuou que, de 2019 a junho deste ano a Justiça do Trabalho recebeu mais de 780 mil casos de empregados pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício e que é necessário ter um entendimento uniformizado até para não se congestionar o Supremo com estes casos.
“Os números indicam o grande potencial de ampliação da discussão no STF, caso atalhado o caminho processual diante do alargamento dos precedentes para fins de reclamação”, diz texto divulgado pela Procuradoria-Geral da República na época.
O papel da Justiça do Trabalho
Para a presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Luciana Paula Conforti, o julgamento do Supremo sobre terceirização não apenas não abordou a pejotização, como ainda muitas decisões do STF têm deixado de considerar o papel da Justiça do Trabalho de verificar, caso a caso, a situação dos empregados.
“Na questão da terceirização, a própria lei fala que devem ser observados alguns requisitos na contratação dessa terceirização: a empresa ter um suporte econômico, poder cumprir essa terceirização, e esses requisitos não têm sido tratados pelo Supremo”, explica Luciana.
“Temos milhões de relações de trabalho no Brasil, algumas serão enquadradas naquele precedente (terceirização) sem problema nenhum, ou estão enquadradas na lei de acordo com a reforma trabalhista, e não há o que se fazer. Mas quando se vê que, apesar de o contrato prever aquele tipo de contratação (terceirização), na prática, aquilo não se verificou, é papel da Justiça do Trabalho dizer que a forma não está correta e que, portanto, o trabalhador tem direito a x, y verbas dentro da sua competência”, segue a magistrada.
Para ela, o simples argumento de que existem contratos formalizados entre duas empresas não pode ser o suficiente para se inviabilizar a atuação da Justiça do Trabalho para verificar as contratações.
Na mesma linha, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT), José Antonio Vieira, entende que a revisão das decisões da Justiça do Trabalho, pelo Supremo Tribunal Federal pode trazer graves consequências sociais.
“A revisão de decisões da Justiça do Trabalho, legitimamente proferidas no exercício da sua competência constitucional, conduzirá à sonegação de direitos sociais fundamentais, próprios das relações de emprego, não estendidos, a princípio, a outras relações de trabalho, como o aviso prévio, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as férias, o décimo terceiro salário, a limitação da jornada e a inserção no regime de proteção previdenciária”, afirmou o presidente da ANPT.
Discurso alarmista
Outro ponto que chama a atenção e autoridades e especialistas no assunto é a reprodução de um discurso alarmista de que, sem a flexibilização das normas de contratação, o Brasil afastaria os negócios mais modernos, como os aplicativos de transporte.
Para o presidente da ANPT, essa visão é distorcida e atende somente aos interesses dos empregadores. “No Brasil, há, porém, um discurso, que reflete uma visão de mundo e tem servido exclusivamente aos interesses do capital, no sentido de que o rigor legislativo poderia conduzir grandes empresas a se retirarem do país, quando, na verdade, o que determinará a sua permanência entre nós é a expectativa de que, considerada a extensão do mercado consumidor, terão lucro, ainda que fiquem sujeitas a encargos trabalhistas e sociais”.
Já a presidente da Anamatra lembra que, em vários países desenvolvidos, têm sido reconhecidos os vínculos trabalhistas entre motoristas de aplicativos e as empresas, como na Europa e em alguns estados dos Estados Unidos, como na Califórnia. Ela lembra ainda que a própria CLT foi atualizada ao longo dos anos e prevê o contrato de trabalho parcial ou mesmo avulso, o que, na visão dela poderia ser utilizado no caso dos aplicativos de transportes.
“Há muitos argumentos de que nossa legislação é obsoleta, mas com base em estudos e pesquisas vemos que situação não é bem essa. Na verdade, é uma disputa que sempre haverá a respeito de quem entende que governo não deve intervir nas relações de trabalho e daqueles que entendem que tem que haver sim um mínimo de intervenção, até porque nossa Constituição tem isso previsto.
Edição: Geisa Marques
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