A morte de Sabrina Bittencourt: uma luta que segue
PACTU
A ativista brasileira Sabrina de Campos Bittencourt, que denunciou vários casos de abuso sexual no país, incluindo os relacionados ao guru Prem Baba e o médium João de Deus, tirou a própria vida neste sábado (2). Sua história não termina com sua morte, mas ao mesmo tempo mostra como é tênue a linha entre a coragem dos que querem transformar o mundo num lugar mais civilizado e livre de abusos e a pressão sofrida pelos que tomam essa tarefa para si como uma missão. Não por acaso, ela citou a vereadora Mariele Franco, defensora de minorias e assassinada no ano passado, em sua carta de despedida.
Sabrina chocou o mundo com o suicídio, cometido em Barcelona, as 21h de ontem, mas deu sinais da continuidade do seu trabalho pelos assistentes e colaboradores. Deixou depoimentos e provas de denúncias contra abusadores de vários países, cujas investigações prosseguirão.
Conforme as contas de pessoas ligadas a ela e pertencentes à organização não-governamental que ajudou a criar, a ONG Vitimas Unidas, só no Brasil são 185 as denúncias contra 13 líderes espirituais que estão sendo apuradas. Isso, contando apenas os casos recebidos desde a denúncia contra o médium João de Deus, em setembro passado.
Ela também foi uma das criadoras da plataforma Combate ao Abuso no Meio Espiritual (Coame), que recebe relatos de crimes sexuais praticados por líderes religiosos.
Há meses a ativista denunciou estar recebendo ameaças diversas, sendo a mais grave feita por um homem chamado Paulo Pavesi. Ela chegou a contar ao jornalista Gilberto Dimenstein, diretor do site Catraca Livre, com quem trocava e-mails frequentemente, e para colaboradores da sua ONG, que tinha recebido informações precisas de que pessoas ligadas ao médium de Abadiânia (GO) acionaram assassinos em vários países para descobrir seu paradeiro e acabar com sua vida.
Ao confirmar a morte de Sabrina, o filho mais velho, Gabriel Baum, mencionou, também sem entrar em detalhes, que ela “preferiu tirar a própria vida em vez de ser assassinada ou morrer de câncer”. Ao jornal O Estado de S. Paulo, ontem (2), disse estar tratando de um linfoma.
“Ela deu o último passo pra gente poder viver. Eles mataram minha mãe", afirmou Gabriel. “Ela só se transformou em outra matéria, nós seguiremos por ela. Foi isso que minha mãe me ensinou. Minha mãe passou o ano todo me preparando, mas nunca estamos preparados. Fez mais de 300 vídeos com todas as instruções, deixou tudo em provas, organizado, em um pacote de cartas. Ela não queria ser morta pelas quadrilhas nem pelo câncer. Lutou até o final”, acrescentou o filho, em postagem divulgada neste domingo pelas redes sociais.
Mulher resiliente
A história de Sabrina sempre foi de resiliência. Com 37 anos, três filhos (dois ainda pequenos, morando com o pai), ela vivia fora do Brasil há mais de 10 anos, depois que tomou como missão a denúncia e a investigação dos casos envolvendo mulheres abusadas sexualmente.
Sabrina foi abusada desde os quatro anos por integrantes da igreja frequentada pelos pais e avós, que são mórmons. Chegou a ficar grávida, aos 16 anos, de um dos estupradores, gravidez que abortou. Passou a atuar como ativista em prol de mulheres que passaram pela mesma situação, principalmente por parte de líderes religiosos.
Brasileira, filha de imigrantes uruguaios e espanhóis, morou em vários países, até para ter condições de se sentir segura e fazer as denúncias. Iniciou a vida profissional trabalhando em iniciativas voltadas para a busca de crianças desaparecidas no Brasil, depois ajudou jovens acometidos por problemas renais e crianças surdas. Destacou-se por atuar, em missão no México, na defesa de índios ameaçados. Foi diretora da entidade voluntária Partners of the Americas e se especializou em empreendedorismo social – o que a levou a ser agraciada com o título de doutora honoris causa da Unesco.
Em mensagem de despedida no Facebook, que logo depois foi apagada, escreveu: “Mariele me uno a ti. Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês. Perdão por não aguentar, meus filhos”.
“João de Deus, Prem Baba, Gê Marques, Ananda Joy, Edir Macedo, Marcos Feliciano, DeRose Pai, DeRose filho, todos os padres, pastores, bispos, budistas, espíritas, hindús, umbandistas, mórmons, batistas, metodistas, judeus, mulçumanos, sufis, taoístas, meus familiares, Marcelo Gayger, Jorge Berenguer", citou. "Eu desconheço a sua infância e a sua criação pelo mundo, mas sei no meu íntimo que todo menino nasceu puro e foi abusado, corrompido, machucado, moldado, castrado, calado, forçado a fazer coisas que não queria, até se converter talvez, cada um à sua maneira, em tiranos manipuladores (em maior ou menor grau) que ao não controlar os próprios impulsos, tentam controlar a quem consideram mais frágil. E assim praticam estupros, pedofilia, adicções diversas… Eu sei, eu sinto, eu vi. Mas ainda assim, preferi sempre ficar do lado mais frágil nesta breve existência”, destacou ainda, no seu texto.
Recado para Damares
Sobre a atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que foi capa da Revista Época nesta semana, acusada pela avó biológica de sua filha adotiva de tê-la retirado de forma irregular de uma tribo indígena, Sabrina ainda afirmou: “Damares, eu sei que você não teve tratamento psicológico quando deveria e teve sequelas, servindo de marionete neste sistema de merda que te cooptou, acolheu e com o qual você se sente em dívida o resto da sua vida”.
“Não tenho dúvidas que você amou e cuidou da sua ‘Lulu’ como gostaria de ter sido cuidada e protegida na sua infância, mas ela não é uma bonequinha bonita que você poderia roubar e sair correndo”, disse ainda, em um último conselho à ministra.
Nos últimos meses, chamou a atenção um vídeo de Sabrina postado nas redes sociais onde, usando um véu e aparentando estar na Turquia, ela denuncia que o caso envolvendo João de Deus também tinha por trás um grande esquema de tráfico de crianças para venda em outros países.
No vídeo, diz estar coletando mais provas, mas que as principais vítimas já foram identificadas e o caso está sendo investigado pelo Ministério Público Federal (MPF). Até agora não houve qualquer informação divulgada pelo MPF a respeito, embora promotores confirmem que várias denúncias contra o médium ainda estão sendo apuradas.
“Estou chocada desde que tive a confirmação”, afirmou a ativista Vana Lopes, fundadora do grupo Vítimas Unidas, criado inicialmente para reunir as vítimas do médico condenado por abuso Roger Abdelmassih. “Vamos dar continuidade ao trabalho dela”, acrescentou, igualmente abalada, Maria do Carmo Santos, presidenta da entidade.
O youtuber Felipe Neto, amigo de Sabrina, divulgou, por meio da sua conta no Instagram, que recebeu um telefonema dela na noite de ontem dizendo não aguentar mais a dor e a pressão das ameaças dos que a perseguiam pelo mundo. “Sabrina me ligou aos prantos, sem saber mais o que fazer", contou. “Ela só queria ajudar, mas o mal guiado por milicianos, políticos no poder nesse momento e líderes religiosos poderosos, conseguiu vencer”, ressaltou.
No Coame, entidade com a qual Sabrina estava mais engajada, o ambiente é de luto. O site está desde o início da manhã divulgando nota em que comunica o falecimento de uma das mais importantes fundadoras. “Juntas, estamos unindo nossas forças e nossas vozes para acabar com as violências no meio espiritual com crianças, jovens e adultos por parte de líderes espirituais e seus discípulos que por tempo demais têm silenciado vítimas e permanecido intocados”, destaca mensagem divulgada pela organização.
Em nota veiculada neste domingo, a presidenta nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), destaca que a ativista não cometeu suicídio. “Sabrina é vítima do sistema patriarcal em que vivemos. Ela foi morta por ter uma vida destinada a luta daqueles que sofrem abusos e são silenciados. Sabrina foi morta pelas perseguições, calúnias e ameaças constantes”, afirma. “A morte de Sabrina escancara para o mundo o país que o Brasil se tornou. Um país hostil e intolerante. Com todas as suas armas apontadas para a população negra, LGBT, pobre e mulheres.”
A RBA, desde o início de janeiro, vinha trocando mensagens com integrantes do Coame para tentar entrevistar seus coordenadores, em especial Sabrina Bittencourt. “Ela é a ativista mais importante hoje do país e seu exemplo tem de ser seguido por todos”, afirmou de Brasília, um dos colaboradores da entidade, o sociólogo e ativista LGBT João Mello.
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