Sem SUS, sem saída, sem vida

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Sem SUS, sem saída, sem vida

Quando se aposentou, o casal Brian Jones e Patricia Whitney-Jones decidiu viver em Ferndale, cidade de 14 mil habitantes no estado de Washington, na Costa Oeste dos Estados Unidos. Em 2004, os dois compraram uma casa confortável de três quartos no fim de uma rua tranquila, rodeada de árvores, com varanda, jardim e garagem ampla. Gostavam de fotografar, caminhar, cuidar do jardim e dos dois cachorros. Mas na manhã do dia 7 de agosto deste ano, às 8:23, Brian ligou para o serviço de emergência 911 e disse que ia se matar. A polícia ainda tentou fazer contato por telefone e enviou um robô com uma câmera. Era tarde demais. Os corpos foram encontrados em um dos quartos, com tiros, um do lado do outro. Ele tinha 77 anos e ela, 76. No local, os detetives encontraram bilhetes dele citando problemas de saúde da esposa e dizendo que não tinha dinheiro para pagar as dívidas médicas. O caso está sendo investigado como assassinato seguido de suicídio.

Noticiada em todo o país, a morte do casal provocou indignação em pessoas que se identificaram com a dificuldade de acesso à saúde e as dívidas astronômicas que podem ser contraídas mesmo por quem já paga um plano de saúde nos Estados Unidos. Um estudo publicado em março no American Journal of Public Health mostrou que, dos pedidos de falência feitos no país entre 2013 e 2016, 66,5% (parcela que representa 530 mil famílias) estavam ligados a problemas de saúde. “Somos um dos países mais ricos do mundo e não deveríamos deixar as pessoas chegarem a essa situação”, disse à piauí o xerife Bill Elfo, que acompanha as investigações do caso. 

Os Estados Unidos não têm um sistema universal de saúde, como o SUS no Brasil. O sistema americano é público-privado. O governo subsidia o seguro de alguns grupos específicos – Medicare para maiores de 65 anos e pessoas com deficiência e Medicaid para população de baixa renda –, mas mesmo esses grupos precisam pagar por medicamentos, hospital e tratamentos especiais. O seguro para idosos não cobre cuidados em casas de repouso, onde idosos e pessoas com deficiência recebem tratamentos específicos. O número de pessoas com seguro-saúde  aumentou muito após o então presidente Barack Obama aprovar a lei Affordable Care Act, também conhecida como Obamacare. Em 2010, 16% da população não tinha seguro; hoje são menos de 10%, ou 30,4 milhões de pessoas. O presidente Donald Trump vem cortando fundos para a divulgação e iniciativas para cadastro de novos beneficiários. Pessoas da família acreditam que eles tinham Medicare, mas o casal era bastante reservado e preferia não falar muito sobre essas questões.

“Mesmo os programas públicos são realizados pelos planos dos seguros de saúde privados ou com algum nível de assistência deles”, explica Cheryl Camillo, pesquisadora americana na Universidade de Regina, no Canadá, que trabalhou no Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo dos Estados Unidos e no Departamento de Saúde e Higiene Mental do estado de Maryland. “Mesmo idosos que possuem Medicare ainda pagam o prêmio do seguro-saúde e coparticipação pela cobertura”, explica. Poucas operadoras de planos controlam o mercado, e, ao mesmo tempo, oferecem centenas de opções de planos, tornando a escolha difícil por parte do consumidor. Mesmo com Medicare, os pacientes precisam pagar o seguro suplementar de medicação. Sem esse seguro, o preço dos medicamentos fica ainda mais alto.

Os Estados Unidos são o país que gasta maior porcentagem do PIB (Produto Interno Bruto) em saúde (17,9%, segundo o Centro para Serviços de Medicare e Medicaid). Pesquisadores da Universidade de Harvard publicaram em 2018 um estudo comparativo do sistema de saúde americano com outros dez países que gastam muito com saúde, como Suíça, França, entre outros, e descobriram que, nos Estados Unidos, os valores pagos por remédios com receita e pela mão de obra são muito mais altos do que nesses outros países. Mas, mesmo assim, a expectativa de vida dos americanos é mais baixa que de outros países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – resultado que pode estar associado às maiores taxas de pobreza e obesidade entre os americanos. Uma análise da instituição independente Kaiser Family Foundation realizada em agosto de 2019 mostrou que o gasto médio de uma família com saúde cresceu 18% nos últimos seis anos, passando de 6 571 dólares  em 2013 para 7 726 dólares em 2018. Já a inflação aumentou 8% e os salários, 12%. A maioria da população depende do seguro-saúde pago pelos empregadores.

Os altos custos da saúde nos Estados Unidos também vêm pesando mais no bolso de idosos e aposentados. Estudo publicado em agosto de 2018 no Jornal de Direito da Faculdade de Indiana mostrou um aumento de 204% de pedidos de falência pessoal para pessoas entre 65 e 74 anos de 1991 a 2016. Para pessoas acima de 75 anos, o aumento foi de 345%. A redução da renda na aposentadoria e os gastos exorbitantes com saúde são citados como alguns dos principais fatores para o número de falências de idosos ter mais que dobrado na última década. Segundo o estudo, os maiores gastos ocorrem com saúde: os idosos acabam pagando exames, medicamentos e outros gastos com cartão de crédito e isso faz as dívidas se acumularem com juros altíssimos. 

No Brasil, os idosos também são os mais penalizados pelos preços altos dos planos de saúde privados, e, sem condição de pagar, acabam saindo desses planos. Hoje, segundo o Ministério da Saúde, quase 80% dos idosos brasileiros não têm planos privados e procuram tratamento no SUS. Para quem, em qualquer idade, não pode pagar pelos planos, o atendimento universal do sistema público se transforma em opção viável, apesar das filas e dos problemas. O governo Bolsonaro tem falado em rever normas do SUS e, ainda que mantendo o acesso universal, previsto na Constituição, quer discutir conceitos como a equidade em saúde, que obriga o governo a fornecer medicamentos de alto custo. Em julho, o Ministério da Saúde rompeu contratos com laboratórios de produção de dezenove remédios distribuídos gratuitamente no SUS.

Ferndale tem apenas um hospital e fica a duas horas de Seattle, onde há mais opções de atendimento. Nichole Schmitt, 45 anos, mora há três anos e meio em uma casa próxima à de Brian e Patricia. Apesar de não conviverem muito, ela disse que costumava ver Brian empurrando Patricia em uma cadeira de rodas na rua, mas nos últimos anos, não os via mais. Schmitt, que é dona de casa, escritora e cuida de três filhos, se mudou para a casa dos sogros para poder contar como duas famílias em uma casa e receber Medicaid. “Nossa renda não pode passar de 3 200 dólares para os cinco, senão perdemos o direito ao plano.” Há alguns anos, o marido dela levou um choque elétrico depois que um poste caiu no meio de uma tempestade. Logo depois do acidente, ligou para a mulher e perguntou: “A gente tem dinheiro para eu ir pro hospital?” Ela disse: “Não temos, mas você vai de qualquer forma, pois levou um choque!” Schmitt já passou quatro horas tentando descobrir qual medicamento poderia comprar para o sogro. Já pesquisou se era mais barato viajar para o México ou Canadá para tratar os dentes porque precisava de anestesia e era muito caro nos Estados Unidos. “Eu acho que vai chegar num ponto que vamos ter que pedir falência para continuar no seguro-saúde”, diz. 

As estratégias para garantir o direito ao seguro-saúde  são variadas. O podcast Committed contou em maio deste ano a história do casal de idosos Larry e Linda Drain, que se divorciou após 33 anos de casados para que a esposa pudesse se qualificar para o Medicaid e manter a medicação subsidiada, que de outra forma custaria milhares de dólares. Linda tem um tipo de epilepsia severa cujas crises podem levar à morte. Nos últimos cinco anos, eles não passaram mais de quatro dias juntos. Moram a 45 minutos de carro um do outro e muitas vezes Larry não tem dinheiro suficiente para colocar gasolina, apesar de, para o governo, a aposentadoria dele ser considerada alta demais para ela receber o benefício. O casal também foi tema de matéria da CNN, onde Larry conta que sua aposentadoria é de 1 000 dólares. Ele se aposentou mais cedo exatamente para cuidar dela. 

No tempo em que trabalhava para o governo, a pesquisadora Camillo supervisionava a escolha sobre quem seria elegível para receber o seguro subsidiado de saúde. “Vi muitos casos em que as pessoas tiveram seus cadastros negados por ganharem 1 dólar, 5 dólares a mais do que deveria. Poderiam ser casais de baixa renda com crianças, mulheres grávidas.” Ao mesmo tempo, ela conta que muitas pessoas em melhor situação financeira contratavam advogados para esconder renda e usar recursos do Medicaid. Quando trabalhava para o Departamento de Saúde de Serviços Humanos do governo federal americano e tinha o plano deles, Camillo quebrou a perna e precisou de cirurgia. Ela conseguiu uma data com um cirurgião quatro dias depois de ter quebrado a perna. Descobriu que seu seguro cobria todos os gastos apenas se tivesse feito o procedimento até três dias depois do acidente. Dessa forma, teve que pagar milhares de dólares não só pela cirurgia, mas também pelas consultas e fisioterapia. “Não estava no estado mental para negociar ao telefone com a operadora para pedir uma exceção para meu caso, eu estava com muita dor, tentando cuidar de mim. Isso é outra razão por que essas práticas continuam. As empresas têm vantagem sobre um pessoa que está doente, especialmente se ela não entende como o sistema funciona.”

Brian e Patricia eram aposentados, e o documento público da falência que assinaram em outubro de 2016 indica que ganhavam de aposentadoria um pouco menos do que gastavam. Acumulavam dívidas com cartões de crédito, hipoteca da casa e do carro. O advogado que os assistiu no pedido de falência pessoal não respondeu aos pedidos para comentar se havia dívidas diretamente relacionadas a questões de saúde. Para alguns parentes, o casal dizia que estava tudo bem e escondia o desespero que culminou na tragédia. Brian era veterano da Guerra do Vietnã e, depois de se aposentar pela Marinha dos Estados Unidos, trabalhou como paisagista e jardineiro na Califórnia, diz seu obituário. Ele teve três filhos e dois netos. Patricia, que trabalhou como assistente executiva na Universidade de San Diego, teve três filhos do primeiro casamento. Brian e Patricia não tinham filhos juntos.

Foi em 2009, depois de uma reunião familiar, que Patricia contou à sobrinha Cynthia Lackie que sofria de fibromialgia avançada e se aposentou cedo por causa da doença. Lackie foi diagnosticada com a mesma doença aos 35 anos. Naquela conversa, compartilharam sentimentos sobre as dores e outras complicações de saúde. Hoje com 54 anos, Lackie fala com tristeza da morte da tia. “A tia Patricia estava sofrendo com fibromialgia, fadiga crônica e Alzheimer”, disse. “[Meu] tio Brian fez tudo o que podia para cuidar dela, mas como ele ia arrumar um emprego se era o cuidador?”

Lackie anda com a ajuda de muletas e ficou sabendo da morte dos tios após se recuperar de uma cirurgia. “Parece que não é real o que aconteceu com eles e o motivo que levou à situação.” Ela conta que percebeu que estavam vendendo algumas coisas que não usavam mais, como caminhonete e equipamentos de camping, mas não imaginava o que estavam passando. Diz que usa grande parte do seu orçamento para pagar seus medicamentos e tratamentos para dor crônica, mas preferiu não revelar valores. “Achei que estava protegendo [minha tia] ao não contar que eu estava com dificuldade com minhas dívidas médicas. Queria ter feito diferente. Talvez ela tivesse desabafado comigo sobre as contas médicas que os preocupavam.” Lackie conta que ambos foram muito ativos, mas nos últimos anos só conseguiam aproveitar a natureza em casa. “Assistir ao fim da vida do amor da sua vida daquela forma deve ter deixado meu tio num estado de depressão que muitos de nós nunca vão entender”, diz Lackie. “Ele queria acabar com a dor dela e acho que viu apenas uma forma de fazer isso: irem embora juntos.”

Fonte: Revista piauí

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