Um ano após eclosão da pandemia, Nordeste tem o melhor desempenho e país está na UTI
PACTU
A prioridade continua ser salvar o maior número de vidas possível. E isso só poderá acontecer se o Brasil acelerar a vacinação e instituir, simultaneamente, ‘lockdown’ como no Reino Unido
No próximo dia 26 de fevereiro o Brasil completa um ano do registro do primeiro caso oficial de covid-19 no país, ocorrido em São Paulo, a cidade com maior número de casos acumulados em todo o país nos últimos 12 meses. No dia 6 de março de 2020, o primeiro caso da infecção pelo SARS-CoV-2 foi identificado em Feira de Santana, na Bahia, definindo o início da pandemia no Nordeste brasileiro.
Depois destes primeiros 12 meses, do que tudo indica ainda será uma guerra muito longa neste canto do mundo, já se pode iniciar o processo de “autópsia da pandemia” como forma de tentar resgatar o que funcionou, o que ficou a desejar e quais foram as causas que, neste momento, colocam o Brasil novamente como um dos epicentros mundiais da pandemia de covid-19. Para começar, com mais de 10 milhões de casos e próximo da marca de 250.000 vítimas fatais, o Brasil consolidou sua posição como um dos países de pior manejo da pandemia em todo o planeta. Neste cenário nacional caótico, para muitos será uma enorme surpresa descobrir que a região Nordeste teve o melhor desempenho entre todas as 5 regiões brasileiras se forem considerados alguns indicadores epidemiológicos importantes. Por exemplo, levando-se em conta dados disponíveis até o dia 23 de fevereiro de 2021, o Nordeste apresentou o menor número de óbitos (97 mortes) por 100.000 habitantes do país. Neste indicador, a região com pior desempenho foi a região Norte com 143 mortes por 100.000 habitantes. Quando o número de casos por 100.000 habitantes nestes 12 meses foi computado, novamente o Nordeste, juntamente com a região Sudeste apresentaram o menor valor (4.222 casos por 100.000/habitante), enquanto a região Centro-Oeste atingiu o pior valor com 6.744 casos por 100.000 habitantes.
Quando a taxa de letalidade da covid-19 é considerada neste primeiro ano da pandemia, o Nordeste ficou em terceiro lugar com uma taxa de 2.3%, muito próximo da região Centro-Oeste (2.0%) e apenas à 0.7% da melhor região do Brasil, a região Sul, que registrou uma letalidade de 1.6%. A pior letalidade do país foi observada na região Sudeste com 3.1%.
À primeira vista estes resultados obtidos pela região Nordeste são surpreendentes, particularmente se considerarmos que a região possui um número de médicos bem abaixo da média nacional, menores recursos e infraestrutura na área de saúde, como leitos de UTI, bem como grandes bolsões de pobreza que fazem com que o Nordeste, apesar de avanços significativos nas últimas décadas, ainda tenha um dos dois menores índices regionais de desenvolvimento humano (IDH) do país, juntamente com a região Norte. Diante deste contexto, como explicar então o desempenho do Nordeste neste primeiro ano da pandemia? Evidentemente, estudos epidemiológicos detalhados terão que ser realizados para que respostas definitivas possam ser encontradas para esta pergunta fundamental, que até certo ponto constitui um dos muitos paradoxos da história da covid-19 no Brasil.
Tendo participado por 11 meses como um dos coordenadores do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus (C4) do Nordeste, eu acredito piamente que a criação deste grupo multidisciplinar de assessoria médico-científica pelo consórcio formado pelos nove governadores da região, e o seu trabalho contínuo durante o primeiro ano da pandemia contribuiu de forma decisiva para que a região Nordeste pudesse reverter todos os prognósticos iniciais que previram que esta seria a região com pior desempenho sanitário durante a crise da covid-19.
Desde a sua criação, no final de março de 2020, o C4 ―como nós carinhosamente apelidamos o comitê― assumiu um papel condizente com uma “força tarefa ou estado maior científico” da região, oferecendo aos governadores nordestinos análises de cenários e riscos iminentes, identificação de novos focos e surtos, bem como recomendações de ações de contenção do espalhamento do coronavírus, baseado no que havia de melhor no cenário científico brasileiro e mundial. Para ajudar na sua tarefa cotidiana, o C4 convocou voluntários de todas as áreas do conhecimento relevantes no combate ao coronavírus para participar de uma plataforma digital de colaboração que foi batizada como Projeto Mandacaru. Nos 14 Boletins publicados ao longo destes 12 meses, o C4 recomendou a adoção de um grande número de medidas ousadas, criativas e sem precedente em todo país. Dentre as muitas sugestões, que se encontram descritas em maior detalhe num artigo recentemente publicado on-line pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), eu gostaria de mencionar quatro:
1) a adoção de um aplicativo telefônico, o Monitora Covid-19, que permitiu não só monitorar quantitativamente o avanço da pandemia em todo Brasil, mas também oferecer consultas médicas por telemedicina que até hoje somam quase 198 mil atendimentos;
2) a criação de Brigadas Emergenciais de Saúde, pequenas equipes formadas por profissionais da saúde da família, formadas com o objetivo de realizar uma busca ativa de pessoas infectadas nas suas casas e locais de trabalho, de forma a realizar diagnósticos, oferecer tratamento e orientações sanitárias. Centenas destas brigadas foram criadas em estados como Maranhão, Piauí e Paraíba, ajudando na identificação de milhares de casos na região;
3) a criação de uma matriz de risco, moldada para a realidade brasileira, que inclusive oferecia critérios quantitativos e objetivos para implementação de medidas de isolamento social mais rígidas como o lockdown, que neste momento ainda é uma das poucas medidas eficazes para conter a transmissão explosiva do coronavírus;
4) A disseminação por todos os meios de comunicação de mídia tradicional e pelas redes sociais, e num site próprio atualizado constantemente, das recomendações do C4 e das melhores práticas médicas e científicas por todo o Brasil e até mesmo para outros países da América Latina;
Como resultado do trabalho do C4, em especial o do subcomitê de modelagem matemática, foi possível recomendar lockdowns em municípios e capitais nordestinas que apresentaram curvas de casos e óbitos em crescimento e taxas de ocupação de leitos de UTI acima de 80%. Lockdowns realizados em São Luís do Maranhão, Fortaleza no Ceará, na grande Recife em Pernambuco e na grande João Pessoa na Paraíba, seguindo recomendações do C4, resultaram em quedas dramáticas no número de novos pacientes infectados e óbitos, gerando efeitos benéficos de longa duração nestas cidades. Para se ter uma ideia, como resultado destas e outras medidas tomadas durante a primeira fase da pandemia, o Nordeste tem as taxas mais baixas de crescimento de casos (265 casos por 100.000 habitantes) e óbitos (4.3 mortes por 100.000 habitantes) nos últimos 14 dias em todo o Brasil.
Infelizmente, com as aberturas das atividades econômicas, realizadas de forma desordenada em todo país a partir de meados de agosto de 2020 e das campanhas eleitorais ―de uma eleição que jamais deveria ter sido realizada―, a partir da primeira semana de novembro todas as cinco regiões brasileiras começaram a apresentar um novo crescimento de casos de covid-19. Com este novo aumento de pessoas infectadas, desencadeou-se uma nova onda de crescimento vertiginoso no número de atendimentos de pacientes infectados nas unidades básicas de saúde, e das taxas de ocupação de leitos de enfermaria e de UTI por pacientes com casos graves da doença. Com capitais e cidades interioranas em todas regiões brasileiras chegando muito próximo de um colapso completo dos seus sistemas de saúde, que pode se materializar em poucos dias ou semanas como resultado, por exemplo, das aglomerações produzidas pelas festas clandestinas de Carnaval, e sem uma campanha nacional de vacinação eficaz, a situação da pandemia de covid-19 tende a se agravar de forma dramática.
A despeito deste quadro dantesco, sente-se no ar que a vontade política de agir de forma mais contundente para barrar o avanço da covid-19 diminuiu consideravelmente. Neste momento, sem uma coordenação nacional para manejo da pandemia, Estados e municípios tentam, cada um a sua forma, lidar com suas crises locais. Todavia, como o caso do Reino Unido demonstrou, não existe forma de derrotar o nosso inimigo agindo e pensando de forma local e focando apenas em medidas paliativas ―como o agora famoso toque de recolher― que passam a não ter mais efeito algum quando as taxas de transmissão do vírus e as taxas de ocupação de UTIs saem de qualquer controle. Portanto, da mesma forma que a ciência ajudou decisivamente o Nordeste a ter o melhor manejo em todo o Brasil neste primeiro ano da pandemia, é preciso que os gestores públicos continuem a se valer dela para enfrentar o que promete ser uma batalha ainda mais decisiva e mortal nesta guerra sem precedentes que o Brasil enfrenta. A prioridade desta nova batalha continua ser salvar o maior número de vidas possíveis. E isso só poderá acontecer se o Brasil aumentar dramaticamente o número de pessoas vacinadas por dia e instituir, simultaneamente, medidas de isolamento social mais restritivo (lockdown) em todo país por entre duas e quatro semanas, exatamente como o Reino Unido fez, obtendo reduções significativas de casos e óbitos em um curto espaço de tempo.
Tendo oferecido todas as recomendações possíveis e me valendo do que existe de melhor na ciência mundial, depois de 11 meses, no último dia 8 de fevereiro eu me despedi dos meus colegas e deixei oficialmente a coordenação do C4, emocionado pelas memórias, mas com o sentimento de ter cumprido a missão que eu me comprometi em realizar no limite da minha capacidade. Tendo compartilhado grandes e tristes momentos com estes novos amigos e colegas, naquilo que eu considero um dos trabalhos mais desafiadores, mas também mais recompensadores de toda a minha carreira científica de 38 anos, eu desejo ao C4 tudo de bom nos meses vindouros. E apesar de ter deixado o C4, gostaria de avisar que continuarei empenhado em combater a covid-19 no Brasil, trabalhando com os voluntários do Projeto Mandacuru e por conta própria, fazendo aquilo que eu sei fazer melhor.
Alguns dias atrás, do nada, um par de gladíolos maravilhosos floresceu (ver no meu Instagram @mnicolelis), basicamente do nada, na sacada da janela da minha sala de estar, que há um ano serve como meu laboratório de estudo da pandemia. Vendo o esforço e a tenacidade que levaram Resistência e Esperança ―como eu as apelidei― a sobreviver contra tudo e todos que apostariam na sua total inviabilidade biológica, eu me senti novamente reconfortado e revigorado para continuar lutando e sobrevivendo. Afinal, como estas duas sobreviventes claramente demonstraram com seu exemplo, o nosso destino enquanto espécie continua a depender apenas de nós mesmos: da nossa inteligência, da nossa coragem e ousadia, mas acima de tudo, da nossa sensibilidade.
Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis
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