Em busca de respostas: o que a ciência ainda não sabe sobre o novo coronavírus
PACTU
Um mês e meio após a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificar a covid-19 como pandemia, a comunidade científica corre contra o tempo em busca de respostas. Os coronavírus são conhecidos desde a década de 1960, mas cada nova variedade exige medidas específicas de controle.
“Ainda há muitos aspectos que desconhecemos”, admite Mradul Kumar Daga, diretor do Departamento de Medicina Interna da Faculdade Maulana Azad em Nova Delhi, capital da Índia. Em março, o médico indiano publicou um artigo científico na Revista de Pesquisas Avançadas em Medicina propondo uma comparação entre o surto de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) de 2002 e a pandemia do novo coronavírus, chamado de SARS-CoV-2.
O texto, assinado em parceria com outros cinco pesquisadores, ressalta que as taxas de letalidade atuais são menores do que há 18 anos, o que não significa que o cenário esteja sob controle. O principal desafio imposto pela covid-19, segundo o especialista, é justamente a falta de informações sobre sua origem e comportamento.
A partir da experiência acumulada durante a gripe suína de 2009 e em outros dois surtos de coronavírus na Ásia, Mradul Kumar Daga explica à reportagem do Brasil de Fato quais aspectos da covid-19 ainda intrigam os cientistas e profissionais de saúde.
Paciente zero
Em qualquer epidemia viral, o primeiro ser humano infectado – chamado de paciente zero – é uma peça-chave. É a partir dele que os pesquisadores analisam as formas de transmissão da doença e buscam indícios sobre o tratamento. Sem essa informação, é como se os profissionais de saúde caminhassem no escuro, respondendo apenas aos sintomas.
“Nas experiências anteriores, com o SARS e o Mers-CoV [síndrome respiratória do Oriente Médio], nós sabíamos exatamente como eles haviam se originado, de onde o vírus veio. Agora, ainda há dúvidas sobre quem foi o ‘paciente zero’”, compara Daga.
O Mers-CoV teve uma taxa de letalidade de 34% e causou 858 mortes entre 2012 e 2014. O SARS matou 774 pessoas na Ásia entre 2002 e 2003, com uma taxa de letalidade próxima dos 10%. O SARS-CoV-2 é o primeiro dos três a se espalhar pelos cinco continentes, mas a taxa de letalidade é inferior a 5%.
O governo chinês reportou os primeiros casos do novo coronavírus no final de dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, província de Hubei. Uma reportagem do jornal South China Morning Post, porém, identificou dez pacientes com uma “pneumonia desconhecida” na mesma província ainda em novembro. O primeiro deles, um homem de 55 anos, no dia 17, poderia ser o paciente zero – hipótese jamais comprovada.
A imprensa mundial vem difundindo a informação de que a doença surgiu no mercado Huanan, na região central de Wuhan, local conhecido pelo comércio de animais silvestres para consumo humano, como morcegos e serpentes.
Pesquisadores da Universidade Agrícola do Sul da China encontraram até 92% de semelhança entre o SARS-CoV-2, causador da covid-19, e um vírus encontrado no pangolim, espécie de tamanduá escamoso vendido no mercado de Wuhan. O animal chegou a ser apontado como vilão, mas especialistas alertam que é preciso encontrar uma semelhança superior a 99% do genoma para encerrar as buscas pelo hospedeiro intermediário do vírus.
Um estudo publicado em 26 de março pela revista britânica Nature analisou as principais evidências científicas sobre o tema e concluiu que, antes de contaminar humanos, o vírus “provavelmente” passou primeiro pelo morcego e depois pelo pangolim. Ainda assim, os próprios autores alertam que são necessárias novas pesquisas para saber exatamente como o vírus foi transmitido.
Dez dias atrás, o embaixador da China na Rússia, Zhang Hanhui, revelou que as cinco maiores organizações científicas chinesas coletaram dados de 93 amostras de genoma da covid-19 em 12 países em quatro continentes diferentes. O levantamento mostrou que o "ancestral" mais antigo da covid-19 é um vírus conhecido como mv1, que posteriormente deu origem ao grupo de genes H13 e H38. Estes teriam evoluído para H3 e, posteriormente, para o H1, que causou a pandemia.
Nomenclaturas à parte, a informação mais surpreendente é que apenas o H1 e seu "pai" H3 foram detectados em Wuhan, e não necessariamente no mercado Huanan. O próximo passo seria rastrear o caminho percorrido pelos “avós” H13 e H38.
“Tudo leva a crer que o espécime H1 foi levado ao mercado de frutos do mar por alguma pessoa infectada, o que provocou a epidemia. A sequência genética não pode mentir”, disse o embaixador à agência estatal de notícias russa TASS. Se essa hipótese se confirmar, não há sequer como garantir que a pandemia começou na China.
Infográfico mostra as dúvidas em torno do paciente zero / Michele Gonçalves/Brasil de Fato
Período de incubação
Segundo estudo da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, o período médio de incubação – entre a infecção e o início dos sintomas – do novo coronavírus é de 5,1 dias. No dia 29 de fevereiro, a OMS recomendou que todos que viajaram ou possivelmente tiveram contato com pacientes de covid-19 fizessem quarentena de 14 dias, para monitorar sintomas.
No entanto, o padrão de 14 dias começa a ser questionado. Médicos como Mradul Kumar Daga, que acompanham a evolução dos pacientes, percebem que esse período de isolamento pode não ser suficiente. “Temos notícias de pacientes testando positivo para a doença 20 ou 25 dias depois de apresentarem sintomas”, afirma.
Enquanto o período de incubação permanece um mistério, o especialista diz que a ampliação do padrão de isolamento deve ser considerada pelos governos e pela OMS. “Kerala é um estado indiano que adotou quarentena de 28 dias, em vez de 14. E os números mostram que eles estão obtendo mais sucesso no controle da doença”.
O estado citado por Daga fica no sul da Índia e obteve os melhores índices de recuperação de pacientes de covid-19 no país até o início de abril. Enquanto as demais regiões manterão políticas rígidas de isolamento até 3 de maio, Kerala começa a retomar gradualmente as atividades.
::Como a China descobriu o novo coronavírus semanas antes da pandemia global::
Evolução da doença
Com o quebra-cabeça da transmissão incompleto, profissionais de saúde ainda buscam entender como a covid-19 se comporta e evolui no corpo humano. “Tivemos pacientes cujo quadro se deteriorou em menos de 12 horas. Eles parecem bem, mas dentro de 12 horas ou 24 horas se debilitam seriamente”, descreve o médico indiano, que busca ouvir relatos de colegas que também estão na linha de frente para cruzar informações.
Mradul Kumar Daga diz que o maior desafio é antecipar ações antes que a doença atinja um nível irreversível. Em países como Índia e Brasil, um dos empecilhos para essa tarefa é o número insuficiente de testes, que faz com que muitos enfermos cheguem ao hospital com problemas respiratórios severos.
“Nós temos que monitorar intensivamente os pacientes, desde aqueles que começam a sentir uma leve falta de ar. Se a intervenção começar cedo, com medicação e tratamento dos sintomas, alguns conseguem se curar sem precisar de respiradores. Esse período inicial é muito crítico, é isso que estamos aprendendo”, relata. “Por outro lado, há pacientes com quadro mais difícil, e que não conseguimos salvar mesmo começando o tratamento o mais cedo possível”.
A sugestão do especialista é que, no limite das suas possibilidades, os profissionais de saúde busquem rastrear o perfil dos enfermos. Quanto mais informações houver sobre o perfil social, o histórico de doenças e o uso paralelo de outros medicamentos pelo paciente, por exemplo, mais subsídios o médico terá para tomar decisões.
Infográfico lista diferentes hipóteses sobre o período de incubação do vírus / Michele Gonçalves / Brasil de Fato
Calor
Ao justificar suas projeções otimistas sobre a evolução da covid-19 no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) costuma falar sobre o clima. Em coletiva de imprensa no dia 18 de março, o capitão reformado citou o avanço dos casos na Itália e minimizou o risco de contágio entre os brasileiros.
“Hoje temos informações, por ser um clima mais tropical, estamos aí praticamente no final, ou já acabou [sic], o verão, e o vírus não se propaga com essa velocidade em climas quentes como o nosso”, disse.
O principal estudo sobre possíveis relações entre covid-19 e clima não é conclusivo. "Nossos resultados de forma alguma sugerem que a doença não se espalharia em regiões úmidas e quentes. Intervenções eficazes de saúde pública devem ser implementadas em todo o mundo para diminuir a transmissão", alertam os cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos.
Mradul Kumar Daga reforça que as relações carecem de comprovação. “Se olharmos para as epidemias do último século e para diferentes tipos de gripe, o auge de todas elas foi no inverno, nos meses anteriores ou subsequentes. O mesmo poderia se aplicar nesse caso, mas não há nenhum estudo científico que garanta isso”, aponta.
Um olhar sobre o mapa da disseminação da doença no Brasil deixa claro que o calor não garante proteção à covid-19. Belém, Fortaleza e Manaus, três das 10 capitais mais quentes do país, registraram, respectivamente, mais de 1.850, 4.991 e 2.738 casos do novo coronavírus e suas Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) operam no limite de capacidade há mais de uma semana.
::Por que Fortaleza se tornou a capital mais atingida pelo novo coronavírus::
Hidroxicloroquina
Cientistas estimam que a descoberta de uma vacina para a covid-19 pode levar até dois anos. Enquanto isso, tratamentos alternativos e medicamentos tradicionalmente usados para outras doenças vêm sendo testados – ainda sem eficácia comprovada.
Mradul Kumar Daga participa de pesquisas para verificar os efeitos do uso de hidroxicloroquina contra o novo coronavírus, além de acompanhar experimentos com plasmaterapia – uso do sangue de pacientes curados no tratamento da doença.
Ao todo, o médico indiano estima que são 10 mil grupos diferentes ao redor do mundo fazendo testes com hidroxicloroquina, e não há consenso sobre o uso seguro da substância para prevenção e controle da covid-19.
“A ideia do meu grupo de pesquisa é comparar os profissionais de saúde na linha de frente que estão tomando e os que não estão, para ver se desenvolvem a doença de forma diferente. Porém, ainda há um longo caminho a percorrer e há muitos problemas relacionados, porque não é uma droga absolutamente segura”, alerta.
A depender da dosagem e do perfil do paciente, a hidroxicloroquina pode causar distúrbios de visão, irritação gastrointestinal e alterações cardiovasculares e neurológicas, por exemplo. No Brasil, o uso do medicamento está liberado, desde que haja prescrição médica.
Infográfico mostra que países tropicais também devem propor medidas rigorosas no combate à covid-19 / Michele Gonçalves / Brasil de Fato
Períodos intermitentes de isolamento
Um dos divulgadores científicos mais lidos do Brasil durante a pandemia, o biólogo Átila Iamarino foi chamado de alarmista ao falar sobre a possibilidade de “quarentenas intermitentes” nos próximos dois anos. Ou seja, períodos alternados de distanciamento social poderiam ser necessários até 2022.
A hipótese foi levantada por cientistas da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em artigo publicado no dia 14 de abril pela revista Science. Essa alternativa, segundo o estudo, poderia garantir a imunização de uma parcela significativa da população a médio prazo, evitando, ao mesmo tempo, o crescimento exponencial dos casos e a sobrecarga dos hospitais.
Os pesquisadores alertam que a definição dos prazos de isolamento e relaxamento dependeria de respostas que a ciência ainda não tem. Por exemplo, por quanto tempo e com qual intensidade uma pessoa que já foi infectada estaria imune ao novo coronavírus. No caso do SARS, o período é de cerca de um ano.
“Não tenho dúvidas de que o vírus estará por aí. Ele vai continuar circulando por um bom tempo”, afirma Mradul Kumar Daga. “Foi assim com a gripe suína de 2009, que vai e vem. Talvez a saída seja alternar os períodos de isolamento, com as informações que temos hoje. Mas não há razão para pânico, porque a severidade e os números caem ao longo dos anos. Então, a covid-19 seguirá conosco, mas será menos letal com o passar do tempo”.
O que fazer?
Enquanto a ciência busca desvendar a covid-19, Daga afirma que os cidadãos devem manter a higienização das mãos e o distanciamento físico, sempre que possível.
Quanto à responsabilidade dos governos, o médico chama a atenção para a necessidade de testar o maior número possível de pessoas e propor medidas graduais de flexibilização nos próximos meses, a partir do número de casos em cada área.
Para isso, é preciso ter um panorama mais preciso da situação. Se apenas quem manifesta sintomas é submetido a teste, romper com a política de isolamento pode significar a explosão imediata do número de infectados. Afinal, pacientes assintomáticos representam até 60% das transmissões de SARS-Cov-2.
A chamada “imunização de rebanho”, segundo ele, costuma ser a melhor forma de enfrentar epidemias. Ou seja, quanto maior o número de infectados, mais pessoas se tornam resistente ao vírus – até o momento em que ele para de se disseminar por falta de hospedeiros suscetíveis. Por vários motivos, essa lógica não se aplica à covid-19.
“O Reino Unido, por exemplo, tentou fazer isso nas primeiras semanas e deu muito errado. O número de infectados cresceu exponencialmente”, lembra. “Os britânicos ignoraram que se trata de um vírus ainda desconhecido, com comportamento próprio, cuja capacidade de transmissão ainda está sendo estudada. Hoje eles reconhecem isso e apostam no isolamento físico como medida emergencial, porque não há outra saída no momento”, finaliza.
O número de casos confirmados no mundo superou os 3 milhões nesta segunda-feira (27), com mais de 210 mil mortes. No Brasil, são 66,5 mi infectados e 4.543 mortes por covid-19.
Edição: Rodrigo Chagas
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