Twitter, Musk e a privatização da web: como enfrentar o peso das big techs no debate público
PACTU
Um dos assuntos mais comentados dos últimos dias nas redes sociais, a decisão recente do Twitter de estabelecer um limite diário de leitura na plataforma vem ampliando as críticas à empresa. Entre usuários e usuárias sobram manifestações de reprovação ao proprietário, Elon Musk, que veio a público anunciar a mudança no sábado (1º).
O assunto levanta questionamentos não só à postura exótica do empresário multibilionário, ao definir uma política que, em teoria, pode causar um esvaziamento do Twitter, mas também à influência de corporações privadas, comandadas por super ricos, nos debates públicos.
Com a medida da plataforma, contas verificadas com selo azul só poderão interagir com 6 mil publicações por dia. Para os perfis que não pagam a verificação, o limite é de mil postagens a cada 24 horas. Novas contas sem o selo estão limitadas a 300 publicações por dia. Musk informou que a política não é permanente e foi definida “para lidar com níveis extremos de extração de dados e manipulação do sistema”.
O pesquisador e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Rafael Evangelista, membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), alerta que essa influência já mostra consequências há quase dez anos e é uma realidade consolidada.
Ele explica que a rede mundial de computadores sempre foi colocada como um ambiente de protocolos abertos, quase como um espaço público. A ocupação privada desse espaço leva a lógica do lucro às interações nessa esfera.
“Vamos pensar apenas nas motivações econômicas da plataforma - não vamos nem falar de motivações políticas - a plataforma quer que você passe o máximo de tempo nela. Quer que você converse com o máximo de pessoas, que traga mais pessoas para lá, que produza conteúdo que as pessoas cada vez mais achem relevante. Elas vão manipulando os algoritmos para fazer com que as pessoas fiquem mais tempo nessa plataforma. É a lógica do lucro delas.”
Em entrevista à Rádio Brasil de Fato, o professor falou também sobre o crescimento dos discursos de ódio, conservadores e de extrema direita no ambiente online, problema que se amplia no mundo todo e que, até agora, teve uma resposta tímida das plataformas digitais. Segundo Evangelista, construir mecanismos de regulação é importante, mas é preciso lutar por uma rede “livre de corporações”.
“O poder das plataformas não está só na política e no debate público, mas em toda a produção cultural, que está acontecendo hoje na rede. Músicas, filmes, está tudo acontecendo ali. Temos problemas graves de influência internacional e imperialismo cultural. São palavras que pareciam estar no passado, mas vemos agora acontecendo no algoritmo. Qual espaço teremos para a língua portuguesa e para a cultura brasileira? Fica parecendo que estamos voltando àquela discussão dos anos 1960 sobre os enlatados americanos, mas agora o enlatado é feito por algoritmos.”
Leia a entrevista a seguir e ouça íntegra no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: Em que medida podemos afirmar que o debate público e global de ideias é controlado por iniciativas privadas?
Rafael Evangelista: Ao longo dos anos, com o surgimento da internet e da web, mais especificamente, fomos nos acostumando a um ambiente com protocolos abertos, de conexão dada por esses protocolos abertos e um ambiente que sempre se colocou como um espaço público, de conexão entre os pontos. Mas por causa desses protocolos abertos, construímos a web como se fosse um lugar comum, uma praça pública. Só que ao longo dos anos, as redes sociais foram se colocando nesse espaço e fazendo fechamentos. Para quem já trabalha com tecnologia, nós conseguimos antever um pouco disso, mas isso já tem acontecido há bastante tempo. Esses espaços mais públicos vão sendo fechados por protocolos fechados.
O Twitter, por exemplo, era uma plataforma que sempre se relacionou bem com a web. Ela tinha RSS, criação de protocolos para exportar as conversas, fazia uma boa integração com outros aplicativos. A compra pelo Elon Musk, eu acho que ele descortinou essa privatização, mas ela não começa com o Elon Musk. Ela já estava lá, só que havia um estilo de administração que ainda dialogava com essa web aberta, mas que já vinha de alguma maneira apertando a condução.
"Já existem revelações sobre o Facebook, razoavelmente antigas e algumas até mais recentes, que mostram que os algoritmos são administrados de uma maneira que privilegia o sensacionalismo, o ódio, as interações nervosas."
Houve a limitação de algumas interações, o RSS sumiu do Twitter, por exemplo, começou a aparecer essa linha do tempo com algoritmo, os posts que apareciam não eram mais aqueles em ordem cronológica, mas aqueles que o algoritmo ia recomendando.
Quando o Elon assume, ele simplesmente engata a quinta marcha nesse processo. Ele tenta administrar a rede, de certa forma, parece que tentando aumentar a lucratividade dela - o Twitter nunca teve uma boa lucratividade, sempre deu prejuízo - ele tenta mudar um pouco isso, só que de uma maneira muito atabalhoada. De certa forma, está jogando o bebê fora com a água da banheira. Está estragando um ambiente mais aberto de conversas.
Qual é o dano dessa realidade?
Os prejuízos estão claros desde o período de 2014 para 2016. O Facebook antes tinha uma centralidade nessa conversa pública. Agora, isso está mais fragmentado, temos nichos diferentes que ocupam redes sociais diferentes. O Facebook usa uma linha do tempo com algoritmo há muito tempo e nós nunca soubemos quais são os critérios. Isso tem um poder enorme no debate público e na formação da opinião pública. Já existem revelações sobre o Facebook, razoavelmente antigas e algumas até mais recentes, que mostram que os algoritmos são administrados de uma maneira que privilegia o sensacionalismo, o ódio, as interações nervosas.
Vamos pensar apenas nas motivações econômicas da plataforma, não vamos nem falar de motivações políticas. A plataforma quer que você passe o máximo de tempo nela. Quer que você converse com o máximo de pessoas, que traga mais pessoas para lá, que produza conteúdo que as pessoas cada vez mais achem relevante. Elas vão manipulando os algoritmos para fazer com que as pessoas fiquem mais tempo nessa plataforma. É a lógica do lucro delas.
O problema é que nós, como sociedade, naturalizamos demais essa privatização da web. Chegamos a tratar isso como um grande viés de democratização da comunicação. Mas a democratização da comunicação já estava na web. As plataformas vão monopolizando isso. Elas monopolizam seus contatos, pegam o meio de distribuição dos conteúdos que você está produzindo na web, elas passam a controlar e administrar com essa lógica privada.
Por isso, o movimento do Musk, mesmo do ponto de vista econômico, não faz muito sentido. Ele parece estar destruindo a própria plataforma que foi construída. Não do ponto de vista econômico, porque já não dava lucro, mas do prestígio que a plataforma estabeleceu. Inclusive, podemos falar que foi um prestígio muito voltado ao progressismo dos Estados Unidos.
Quando o Musk compra o Twitter, ele, de alguma maneira, está comprando um lugar que a esquerda ou centro-esquerda dos Estados Unidos gostava de se comunicar. De repente, ele começa a destruir aquilo. Não é um movimento que faz muito sentido do ponto de vista empresarial. Talvez ele seja mesmo um péssimo empresário, afinal, construiu tudo a partir de herança e assim por diante. Precisamos desmistificar essa imagem de gênio dele.
"É muito difícil atuar sobre plataformas que têm mais poder que muitos países. Mesmo nesse horizonte político, precisamos de uma luta de regulação de plataformas, de alguma maneira, global."
É um sujeito superpoderoso, que não é apenas do Twitter, ele é dono de satélites que estão fazendo comunicação na Amazônia. Ele tem satélites em órbitas geoestacionárias que sustentam, por exemplo, a internet na Ucrânia.
Ao mesmo tempo, você tem outras plataformas da extrema direita que estão aparecendo por aí, que já atendem a esses nichos da extrema direita. A extrema direita, inclusive, fez isso muito bem. Claro, eles não abandonam essas plataformas, não as deixam de lado, mas a parte mais extremista do discurso vai para plataformas pequenas que estão criando, para manter contato, manter essa formação de pessoas nesse discurso extremista.
No seu artigo Internet: falta debater o essencial, publicado no site Outras Palavras, o senhor escreve sobre a necessidade de estabelecer uma “rede livre das corporações – que a esquerda abandonou, para alegria dos fascistas”. Qual é a urgência dessa discussão?
É necessária porque, muitas vezes, me parece que a própria esquerda colocou todas as esperanças de democratização das comunicações nas plataformas. E agora, diante de tudo o que vem acontecendo, ela está tentando regular as plataformas, muito corretamente. Mas essa não pode ser a única estratégia.
Se for assim, vamos fazer do Facebook, o Twitter e outros lugares grandes espaços públicos, mas a realidade da regulação dessas plataformas é que é muito difícil regular. É difícil conseguir algoritmos explicáveis e vencer a ideia de obscurecer os algoritmos e conseguir transparência das plataformas.
No Brasil, por exemplo, estamos no ponto de vista de um país periférico do sul. É muito difícil atuar sobre plataformas que têm mais poder que muitos países. Mesmo nesse horizonte político, precisamos de uma luta de regulação de plataformas, de alguma maneira, global.
Precisamos de espaço para filmes brasileiros, música brasileira e cultura brasileira para alcançar as pessoas, porque hoje não conseguimos mais chegar até elas sem passar pelas plataformas.
É importante fazer isso em nível nacional, porque ajuda a diminuir a força das plataformas. Mas não é bala de prata. Precisamos também entender que isso tudo está sendo construído em cima da web, que tem protocolos abertos, protocolos públicos. Temos sistemas de governança da internet que são relativamente permeáveis, precisamos participar e nos envolver nesse debate.
Também temos a possibilidade de obter financiamento para construir tecnologias de comunicação mais democráticas, aproveitando a estrutura da web que está disponível, e construir nossos próprios lugares de interação e produção coletiva.
O poder das plataformas não está só na política e no debate público, mas em toda a produção cultural que está acontecendo hoje na rede. Músicas, filmes, está tudo acontecendo ali. Temos problemas graves de influência internacional e imperialismo cultural. São palavras que pareciam estar no passado, mas vemos agora acontecendo no algoritmo. Qual espaço teremos para a língua portuguesa e para a cultura brasileira? Fica parecendo que estamos voltando àquela discussão dos anos 1960 sobre os enlatados americanos, mas agora o enlatado é feito por algoritmos.
"Precisamos discutir seriamente, da mesma forma que sempre discutimos a democratização das comunicações. Discutíamos que precisávamos de infraestrutura pública e de espaços plurais, para todas as vozes. Devemos fazer isso em relação às plataformas, porque, se não, é só mercado e investimento privado de grandes acionistas do exterior. Precisamos de espaço para filmes brasileiros, música brasileira e cultura brasileira para alcançar as pessoas, porque hoje não conseguimos mais chegar até elas sem passar pelas plataformas."
É uma influência que tem funcionado como desinstitucionalização, digamos assim. Por exemplo, o jornalismo, que construiu ao longo dos anos suas regras para discutir o que vai na capa do jornal, o que vai no jornal televisivo, quais são as matérias importantes do dia. Hoje, isso é substituído por um algoritmo que define a timeline e como as pessoas consomem notícias.
Isso está valendo para outras esferas da vida. Temos uma educação que não se dá mais por professores que discutem assuntos na escola e chegam a padrões, mas por uma timeline de um algoritmo do YouTube, que sugere vídeos, entre aspas, educacionais para as crianças.
Precisamos ser senhores de novo. Institucionalmente, culturalmente - não estou nem falando como estado, uma coisa de cima para baixo - nós, como sociedade, nos assenhoramos de novo do que é a nossa cultura, nossa educação, o nosso debate público.
Edição: Leandro Melito
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