Mulheres sindicalistas rejeitam PL que criminaliza aborto de vítimas de estupro

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Mulheres sindicalistas rejeitam PL que criminaliza aborto de vítimas de estupro
Bolsonaristas querem que vítimas de violência sexual que abortem do estuprador fiquem presas por 20 anos, pena maior do que a do criminoso que em média é de 15 anos. No país a cada 10 vítimas, seis são crianças

O Projeto de Lei 1904/2024, que está sendo chamado da “gravidez infantil”, e do “incentivo ao estupro” - pois equipara o aborto ao homicídio, inclusive nas situações permitidas por lei até a 22ª semana, como nos casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia - pode voltar à pauta da Câmara Federal nessa quarta-feira (12). A princípio estava marcado para a terça (11), mas foi adiada a votação. O aborto nesses casos é permitido no Brasil desde 1940.

O PL prevê prisão de até 20 anos para as vítimas de violência sexual que realizarem aborto. Hoje o crime de estupro tem pena entre 8 e 15 anos de reclusão, o que significa que as mulheres e os profissionais de saúde que realizarem o procedimento serão punidos com maior rigor do que o criminoso que cometeu a violência sexual. A pena para o estuprador só é maior (de 12 a 30 anos) caso a vítima seja assassinada.

O projeto tem inúmeras camadas que envolvem direitos humanos, da mulher, da criança, à saúde e o combate ao racismo, já que as vítimas são, na maioria, mulheres e crianças negras (veja dados abaixo).

A secretária da Mulher Trabalhadora da CUT Nacional, Amanda Corcino, critica o atraso brasileiro em relação aos direitos reprodutivos, já que no mundo as mulheres caminham para plena autonomia sobre seus corpos.

“No Brasil estamos correndo um sério risco de termos o pouco que avançamos ser retirado da legislação do país. O PL limita direitos garantidos há décadas. O que é mais sério, coloca em risco principalmente a vida das pessoas mais frágeis, vulneráveis. Certamente a mulher trabalhadora com salários mais baixos e trabalhos precarizados serão as principais vítimas, as primeiras a serem atingidas”, afirma a dirigente.

"É um retrocesso sem precedentes. É uma aberração. Precisamos unir todo o campo progressista hoje presente no Congresso Nacional e impedir que continue em pauta. Pela vida em curso das mulheres! Pela vida de nossas meninas, diga não ao PL 1904" - Amanda Corcino

Crianças e mulheres negras, as maiores vítimas

O Atlas da Violência estima que ocorram, na realidade, 822 mil casos de estupro por ano no Brasil, dos quais apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e apenas 4,2% são notificados ao sistema de saúde.

Em 2022 foi registrado o maior número de estupros tanto entre adultos como em vulneráveis na história do país, com 74.930 vítimas. Dessas, seis em cada 10 são crianças, com idades entre zero e 13 anos. A maioria foi estuprada por familiares e outros conhecidos.

No ano passado o número de estupros de vulneráveis chegou a 36,9 casos para cada grupo de 100 mil habitantes (segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública). Nos últimos 10 anos, a média de partos de meninas com menos de 14 anos foi de mais de 20 mil por ano, sendo 74,2% negras.

A questão racial também precisa ser analisada dentro do contexto deste projeto de lei, entende Maria Julia Reis Nogueira, secretária de Combate ao Racismo da CUT Nacional. Para ela esse debate é crucial para a sociedade brasileira, pois quando pensamos que superamos atrasos, na verdade, não conseguimos avançar.

Segundo a dirigente, quando se vê a composição da sociedade, as mais afetadas por esse projeto serão as mulheres negras, que também são maioria no encarceramento feminino e na questão da precarização do trabalho.

“Precisamos de um olhar mais atento às nossas crianças e aos adolescentes. As estatísticas mostram que os estupros deles ocorrem dentro das casas, quando deveriam estar protegidos pelos pais, avôs e irmãos, mas estão totalmente expostas a essa violência. Imagine uma criança carregar no ventre outra criança, fruto de um ato tão abominável como o estupro”, ressalta.

"A Secretaria Nacional de Combate ao Racismo da CUT continua no entendimento e na luta para evitar que as mulheres negras e as meninas negras, sejam penalizadas. Neste sentido nossa posição é contrária à aprovação deste projeto de lei" - Maria Julia Reis Nogueira

Em 10 anos (2013-2022), a média de nascidos vivos de meninas menores de 14 anos foi de 21.905,5 por ano. Ou seja, a cada ano, mais de 20 mil meninas deixaram a infância ou a adolescência para viverem a maternidade.

Criminalização dos profissionais da saúde

A criminalização dos profissionais de saúde que hoje fazem o procedimento amparados em lei é criticada por Maria Julia Reis Nogueira, que é também presidenta da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Seguridade Social (CNTTS-CUT).

Para ela a falta de profissionais qualificados e autorizados a praticar esse tipo de procedimento empurra as mulheres a procurarem clínicas e profissionais sem condições de um atendimento digno e seguro e outras até tentam interromper a gravidez por conta própria colocando em risco suas vidas.

Julia conta que o setor de saúde já é sobrecarregado nas situações de aborto no Brasil porque se sabe que quem pratica aborto seguro é quem tem condições financeiras para contratar um profissional para fazer a interrupção.

“As mulheres negras e pobres vão em qualquer espaço para interromper a gravidez que podem trazer consequências que resultam em sobrecarga para o Sistema Único de Saúde [SUS] e, pior como fruto desse aborto mal feito essas mulheres acabam sendo vítimas, vindo a óbito ou ficando com sequelas pro resto de suas vidas por perderem, em muitos casos, o útero, o ovário, que as impedirão de mais adiante de ter uma gravidez segura. Tanto do ponto de vista racial como da saúde pública no Brasil é necessária, é fundamental que o aborto legal, já previsto na lei, seja assegurado para toda a população”, conclui a dirigente.

Confronto do Legislativo com o Judiciário

O projeto poderá ser votado diretamente no Plenário porque na semana passada um grupo de deputados federais das bases evangélica e bolsonarista, pediu a urgência do PL, o que permite colocar diretamente em votação sem passar por comissões e outros trâmites. Esta decisão cabe ao presidente da Casa, Arthur Lira (PL-AL). Os autores do projeto são Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), Evair Vieira de Melo (PP/ES), Delegado Paulo Bilynskyj (PL/SP). O PL tem ainda a subscrição de 32 deputados da base bolsonarista.

O requerimento de urgência para a votação do PL foi protocolado algumas semanas depois que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a medida do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dificultava o acesso ao aborto legal por pessoas vítimas de estupro.  A resolução do CFM proíbe o método recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em casos de gestação com tempo superior a 22 semanas, que é a técnica de assistolia fetal, um procedimento de uso de fármacos para interromper as batidas cardíacas do feto antes da retirada dele do útero.

A decisão é liminar foi submetida ao plenário da Corte. O julgamento, no entanto, foi interrompido após um pedido de vista do ministro Kassio Nunes Marques (indicado por Bolsonaro). Ainda assim, a resolução continua suspensa.

O confronto iniciado pelo Poder Legislativo para dar uma “resposta” ao Poder Judiciário continuará ocasionando o que, há décadas, o movimento feminista e demais defensores dos Direitos Humanos lutam diariamente para evitar: a morte de pessoas inocentes e vulneráveis, acredita Letícia Dias, que atua como advogada de direitos sociais na LBS Advogadas e Advogados, escritório que assessora a CUT Nacional.

Para ela o Brasil como uma República Democrática de Direito, questões de cunho social precisam ser enfrentadas em debate sério, científico e ao lado da coletividade diversa e plural dos brasileiros.

“O aborto legal, em caso de abuso, uma conquista do movimento de mulheres, visa oportunizar a segurança física e mental de gestantes que já vítimas de severa violência possam escolher se desejam ou não continuar com a gravidez. Vejamos, a escolha não é sobre findar a vida de um feto, mas preservar sua sanidade e existência. E quem poderia questionar esta escolha?”, pergunta a advogada.

Letícia destaca que a cientista e antropóloga Debora Diniz, estudiosa do tema, tem afirmado que esse debate não pode se restringir em falta de razoabilidade ou criminalização, uma vez que a questão é sobre o direito das mulheres em âmbito de saúde pública de pessoas que detém direito à vida e à saúde.

“Portanto, se não estamos debatendo o direito das mulheres, crianças e pessoas que gestam com seriedade e atravessamentos de classe, raça, gênero e saúde pública que preconiza a discussão, então, não estamos diante de um sério projeto legal e, sim de um apanhado retrocesso contra a vida das mulheres”, afirma a advogada.

"Firmados em ideais coloniais e patriarcais, nosso país interpreta com ‘normalidade’ que o debate sobre o corpo de mulheres e crianças seja feito sobre a lente pública, sem compreender que sobre tais corpos há a existência de entes que detém de direitos e deveres. Crianças, por exemplo, são seres humanos que necessitam ter sua cidadania respeitada e cuidada não só por seus familiares e o Estado, mas todos os entes da sociedade civil" - Letícia Dias

 

Fonte: CUT

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