Reestruturação ministerial e fim do Consea: retrocesso nunca visto nem na ditadura
PACTU
Para a pesquisadora da USP Larissa Mies Bombardi, reestruturação ministerial promovida por Bolsonaro coloca "a justiça humana e ambiental subordinadas aos interesses econômicos".
Para a pesquisadora da USP Larissa Mies Bombardi, reestruturação ministerial promovida por Bolsonaro coloca "a justiça humana e ambiental subordinadas aos interesses econômicos"
São Paulo – Em sua primeira medida provisória como presidente da República, a de número 870, Jair Bolsonaro promoveu diversas mudanças como o esvaziamento das atribuições da Funai e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Para a autora do Atlas de Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, a professora do Programa de Pós Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Mies Bombardi, trata-se de uma reestruturação que subordina os direitos humanos ao interesse econômico.
"Vemos que o ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) passa a ter entre suas atribuições cuidar da reforma agrária, da regularização fundiária de áreas rurais, da Amazônia legal, de terras indígenas e quilombolas. Quando observamos tudo isso junto, como se fosse uma pauta única e submetida ao Ministério da Agricultura e Pecuária, é possível enxergar que não houve um retrocesso tão grande na legislação brasileira nem nos governos militares", avalia Larissa, em entrevista ao jornalista Glauco Faria na Rádio Brasil Atual.
Ela destaca ainda o caráter democrático do Consea, órgão fundamental no enfrentamento ao problema da fome no Brasil e aberto à participação da sociedade civil, que agora tem um papel meramente acessório. "Para usar uma metáfora, o Consea era o coração na Presidência da República e se tornou um apêndice", analisa.
Confira abaixo alguns dos principais trechos da entrevista:
A professora do Programa de Pós Graduação em Geografia Humana da USP Larissa Mies Bombardi
O papel do Consea
O Consea era um órgão de assessoria imediata da Presidência da República. Um órgão importantíssimo, democrático, o Brasil inclusive era uma referência para outros países em termos de segurança alimentar por ter essa estrutura democrática diretamente ligada à Presidência da República.
Era composto por dois terços de representantes da sociedade civil e um terço de representantes do próprio governo. Tínhamos entre os conselheiros representantes da Abrasco, do Idec, do Instituto Alana, que versa sobre os direitos das crianças, entre outras instituições.
E o Consea teve uma importância enorme na discussão da alimentação como direito humano básico, gestou a política de agroecologia e produção orgânica, e agora, com essa medida provisória, o presidente praticamente extingue o Consea, o vincula ao ministério da Cidadania, mas sem participação da sociedade civil.
Dentre as recomendações que o Conselho havia trabalhado estavam a redução do açúcar nos produtos alimentícios, sua rotulação adequada, a recomendação de menor consumo de alimentos industrializados, a determinação de alimentação orgânica tanto em escolas como em hospitais, além de uma preocupação central na superação da fome.
E um último elemento, que acho que vale a pena mencionar e mérito do trabalho do Consea, foi colocar que o uso de agrotóxicos tem que ter seu marco regulatório baseado nos direitos humanos.
Houve todo um trabalho do Conselho vinculado à segurança alimentar e no sentido da soberania alimentar. Segurança, relacionada à quantidade de alimentos, e soberania, relacionada à qualidade. E o que quer dizer qualidade? São alimentos livres de substâncias tóxicas. É uma tragédia vermos a extinção do Consea no momento em que o país está voltando para o Mapa da Fome.
Os efeitos da reestruturação
Como vejo isso em uma perspectiva mais ampla, pensando nessa reestruturação dos ministérios? Vemos que o ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) passa a ter entre suas atribuições cuidar da reforma agrária, da regularização fundiária de áreas rurais, da Amazônia legal, de terras indígenas e quilombolas.
Quando observamos tudo isso junto, como se fosse uma pauta única e submetida ao Ministério da Agricultura e Pecuária, é possível enxergar que não houve um retrocesso tão grande na legislação brasileira nem nos governos militares.
É a primeira vez na história recente do Brasil que não se reconhece que temos uma questão agrária no país. Os governos militares aprovaram em 1964 o Estatuto da Terra, dizendo textualmente que o Estado tem a obrigação de garantir o acesso à terra para quem nela vive e trabalha.
A gente está em um momento histórico que retrocede inclusive em medidas reconhecidas nos governos militares. Quando vemos outros ministérios, como o do Desenvolvimento Regional, observamos nessa pasta a política nacional de recursos hídricos e também a política nacional de segurança hídrica.
Como podemos pensar em segurança hídrica se ela está subordinada à ideia do desenvolvimento? Qual a leitura que podemos fazer dessa reorganização ministerial? Há uma distorção nessa organização na medida em que a justiça humana e ambiental estão subordinadas aos interesses econômicos.
Consea: de coração a apêndice
Para usar uma metáfora, o Consea era o coração na Presidência da República e se tornou um apêndice. Enquanto nossa Constituição reza em seus princípios básicos a soberania, a cidadania, a prevalência dos direitos humanos, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, é isso que está nos nossos princípios fundamentais e portanto os ganhos econômicos não estão acima dos direitos humanos. Quando enxergamos essa reestruturação dos ministérios vemos os direitos humanos subordinados ao interesse econômico.
O salto para frente e o salto para trás
O Consea deu um salto, no início a ideia era a segurança alimentar, o acesso a todas essas medidas populares dos últimos anos como o bolsa Família, para superar esse momento da fome, e de fato conseguiu. Inclusive o antigo Ministério do Desenvolvimento Social tinha um mapeamento mostrando como essas políticas permitiram a superação da fome. Em um primeiro momento houve a questão da segurança alimentar e depois a "cereja do bolo", a soberania alimentar.
Por que cereja do bolo? Só chegamos nesse nível de excelência, diria, de discutir a qualidade, alimentos livres de substâncias tóxicas, porque tínhamos resolvido o problema da fome. Agora estamos dois passos atrás, não vamos conseguir discutir a soberania porque as pessoas sequer estão comendo. É um abismo atrás do que deveríamos estar.
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