Lula, a Kennedy Alencar: 'Temos no Brasil um problema psicológico coletivo na elite brasileira'

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Lula, a Kennedy Alencar: 'Temos no Brasil um problema psicológico coletivo na elite brasileira'

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirma que o início do governo Bolsonaro é desastroso. "A impressão que eu tenho é que ele não sabe 'lé com cré'. A impressão que eu tenho é que ele não tem noção das coisas que fala", diz Lula sobre o atual presidente, na íntegra da entrevista ao jornalista Kennedy Alencar divulgada nesta segunda-feira (13) em seu blog.

Para Lula, o atual estágio político do país resulta de "um problema psicológico coletivo na elite brasileira". A psicose foi causada pela ascensão dos mais pobres durante os governos do PT, graças aos programas sociais, valorização do salário mínimo e das políticas educacionais de inclusão, que seriam aprofundadas e aprimoradas se Lula fosse novamente eleito. "Então, eu penso que esse preconceito e essa coisa de não deixar o PT voltar para não permitir mais a continuidade da ascensão social… Eles sabiam que, comigo, a coisa iria acontecer. Eu voltaria muito mais calejado, muito mais preparado."

Sobre a política econômica do governo Bolsonaro, comandada pelo ministro Paulo Guedes, que tem como carro-chefe a chamada "reforma" da Previdência, Lula diz que é voltada exclusivamente para o mercado. "Para o Guedes, se vai ter aposentado passando fome, se vai destruir a Previdência Social, pouco interessa. Isso é dado estatístico. O que ele quer é contemplar o mercado."

Ele também criticou o alinhamento automático com os Estados Unidos na política externa do atual governo. "O Brasil precisa apenas aprender a se respeitar. O Brasil não tem que se alinhar nem a Washington, nem a Pequim, nem a Moscou, nem muito menos a Frankfurt. O Brasil tem que se apoiar na sua soberania. O Brasil é um país que tem 210 milhões de habitantes. O país tem efetivamente quase tudo que precisa. Tem um potencial intelectual extraordinário! O que o Brasil precisa é para de ser mesquinho."

Trechos da entrevista tinham ido ao ar na última sexta-feira (10) pela rede britânica BBC World NewsLula também falou da obsessão de Bolsonaro por armas, do atual estado da economia, das últimas eleições, dos acertos e erros do seu governo, de Moro e Dallagnol e da a perseguição que vem sofrendo pela Lava Jato.

Sobre as manifestações de Junho de 2013, que serviram de antessala aos protestos pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, Lula diz que ali já começava um movimento articulado internacionalmente para a derrubada do PT. Ele também diz que Dilma cometeu erros na condução da política econômica do seu governo, mas as "convicções muito fortes" da ex-presidenta a impediram de corrigir os rumos, mesmo quando alertada. 

Lula lembrou dos esforços do seu governo, e também no governo Dilma, no combate à corrupção. "É importante lembrar que todos os instrumentos de combate à corrupção neste país foram feitos nos oito anos (do governo Lula) e nos quatro anos da Dilma… tudo, tudo o que nós fizemos. Até a Lei da Transparência – que você, como jornalista, deve ter ficado muito satisfeito, pois você tinha acesso a qualquer coisa – agora acabou. 

Ele também comparou a diferença de tratamento dispensada a ele e ao ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro Fabrício Queiroz, acusado de comandar esquema de desvio de salários de funcionários-laranja lotados no gabinete do filho do presidente quando este era deputado estadual no Rio de Janeiro. 

"Eu nunca tinha sido convidado para prestar um depoimento. E, quando acontece com o Queiroz, ele primeiro se recusa a ir. Depois, faz por escrito um depoimento. Estou mostrando a diferença. Segundo, no meu julgamento, qual é o crime que eu cometi? É um fato indeterminado. O sr. Moro reconhece que não tem dinheiro da Petrobras, o sr. Moro reconhece que o apartamento não é meu, mas ele precisava me condenar. A mesma coisa é na acusação. O Dallagnol, depois de ele fazer uma hora e meia de hipocrisia para a mídia brasileira, fala: “Não me peçam provas, eu só tenho convicção”. E por conta disso eu estou aqui, meu filho!"

A conversa de Lula com Kennedy Alencar foi realizada no último dia 3 na Superintendência da Polícia Federal no Paraná. 

Confira a integra da entrevista

Eu quero começar, presidente…

Eu queria fazer só uma ponderação, que você falasse um pouco mais alto.

Tá bom.

A idade vai diminuindo a audição.

Eu vou falar mais alto, tá bom. Quando o sr. foi presidente do Brasil, que papel o Brasil passou a ocupar no cenário mundial?

Olha, eu tinha alguns compromissos com o Brasil e com a minha história. Antes de dizer esses compromissos, eu queria, primeiro, agradecer a entrevista. Dizer que é uma oportunidade extraordinária que você está me dando de poder colocar a verdade nua e crua, sempre desafiando qualquer empresário, qualquer juiz, qualquer promotor a provar qualquer deslize da minha conduta ética e moral neste país, da minha honestidade. E reafirmar que há um inquérito mentiroso a meu respeito, uma acusação mentirosa e um julgamento mentiroso. E disto eu faço questão – tenho uns 20 anos de vida pela frente –, de tentar provar a farsa e a montagem que fizeram para poder me colocar aqui.

Nós vamos falar desses casos específicos, mas agora eu queria falar um pouco da sua Presidência.

Quando fui presidente da República, eu tinha um compromisso com a minha história e tinha um compromisso com o povo brasileiro. Ou seja, eu precisava provar que o Brasil tinha possibilidade de crescer, tinha possibilidade de melhorar a vida do povo. E você veja que eu fui muito comedido no meu discurso depois da vitória. Eu disse apenas o seguinte: se, ao terminar o meu mandato, cada brasileiro ou brasileira estiver tomando café da manhã, almoçando ou jantando, eu já terei cumprido a tarefa da minha vida. Foi com base nisso que eu fui a Davos anunciar o Programa Fome Zero, antes de anunciar em Porto Alegre, no encontro social (Fórum Social Mundial de 2003) que houve em Porto Alegre. E eu queria provar que os economistas não davam conta de resolver os problemas do Brasil com as discussões teóricas que eles faziam. No Brasil, sempre se discutia: é preciso crescer para distribuir ou distribuir para crescer. E nós chegamos à conclusão de que era preciso fazer os dois concomitantemente: era preciso crescer distribuindo e distribuir crescendo. Não dava para fazer as pessoas esperarem, como o meu amigo Delfim Neto dizia: Primeiro, o bolo vai crescer. Quando o bolo crescer, vamos distribuir”. O bolo crescia, alguém comia, e o povo ficara esperando. E nós, então, resolvemos fazer isso. Eu também tinha como objetivo mudar a geopolítica internacional, fazer com que o Brasil passasse a ser protagonista da política internacional. Eu já contei com a ajuda de muita gente. Tive a ajuda de muitos presidentes. Me sinto honrado de ter tanta gente que contribuiu comigo. Todos os presidentes do mundo contribuíram comigo, me tratavam bem, me respeitavam bem, a ponto de o presidente do FMI (Fundo Monetário Internacional) chorar duas vezes comigo, discutindo a solução dos problemas brasileiros. E eu, quando deixei a Presidência, tenho muito orgulho, porque o Brasil virou protagonista. Fui o único presidente do Brasil a participar de todas as reuniões do G8, menos a feita em São Francisco, convidada pelo Bush, que foi a segunda. E eu fui um dos artífices da criação do G20 para discutir a crise de 2008. O Brasil virou protagonista, o Brasil passou a ser respeitado, o Brasil passou a ser levado em conta. Os brasileiros que viajavam tinham orgulho de viajar com o passaporte brasileiro. E o Brasil estava propenso a se transformar na quinta economia do mundo.

Presidente, como o sr. descreveria a forma como o Brasil e o sr. foram tratados desde o momento em que o sr. deixou a Presidência com uma popularidade alta… o Brasil parecia um modelo emergente, de poder emergente?

Vamos levar em conta uma coisa que eu digo para tentar fazer as pessoas entenderem o que aconteceu com a Dilma, que é um pouco parecido com o que aconteceu com o Fernando Henrique Cardoso, com uma diferença: o Fernando Henrique Cardoso tinha o (Michel) Temer na Presidência da Câmara, tentando ajudar a aprovar as reformas; e a Dilma ganhou de presente o Eduardo Cunha, que trabalhava para não aprovar nada, para tentar fazer as chamadas… Como é que fala? As propostas-bomba…

Pautas-bomba.

As pautas-bomba. A Dilma mandava exonerar esse copo, e vinha não apenas o copo, mas também a garrafa, o bar, a esquina, a rua. Na verdade, trabalharam para prejudicar a presidenta Dilma. Essa foi a diferença básica. A segunda coisa, é importante lembrar, é que a Dilma, em 2012, tinha 75% de aprovação. Era a maior aprovação de um presidente naquela época, até mais do que eu, no final do seu primeiro mandato. Ora, então a Dilma estava bem. Quando é que se desarranjaram? Eu acho que houve um descuido no trato da política externa. Porque eu tratava (da política externa) com muito carinho. Eu sempre achava que política você não faz por e-mail, política você não faz por fax, política você não faz por Instagram, política você não faz por WhatsApp. Política é olho no olho.

A Dilma subestimou, desprezou a política externa?

Houve uma mudança. Obviamente, você não encontra um Celso Amorim em cada esquina do planeta Terra. O Celso Amorim, quando ele estava na ativa, eu o tinha como o mais importante ministro de Relações Exteriores do mundo. Eu sei o quanto o Celso era levado em conta. Eu sei o quanto o Celso era respeitado pela China, pela Rússia, pelos Estados Unidos. O Colin Powell, que era Secretário de Estado americano, para escrever alguma coisa sobre a Venezuela, ligava para o Celso Amorim. Obviamente, a Dilma não teve o Celso Amorim. Ela escolheu outro companheiro e não teve o mesmo resultado. E política externa significa você ganhar confiança, significa você conversar com as pessoas, significa você ter paciência, significa você ouvir. E eu fazia isso com prazer, porque eu sonhava estrategicamente em ter o Brasil entre os principais países do mundo na decisão da geopolítica internacional. É por isso que nós criamos o Brics, que nós criamos o Ibas, que era Brasil, África do Sul, China e Índia. A China queria entrar, e a gente não deixava porque a China não era democrática.

Presidente, por que aconteceu com o sr. e com o Brasil o que aconteceu?

Quando houve o impeachment da Dilma – um impeachment, eu diria, com base numa mentira deslavada, com base numa farsa montada –, eu tinha a certeza de que o processo contra a Dilma era o início de um processo que teria que terminar em mim. Você deve ter conversado comigo algumas vezes, e eu disse o seguinte: o impeachment não termina se não passar pelo Lula, porque eu não conseguia enxergar como é que tiravam a Dilma para deixar o Lula voltar para a Presidência do Brasil.

E por que tinha que tirar o Lula?

Olha, eu penso que no Brasil nós temos um problema psicológico coletivo na elite brasileira, que é não suportar a ascensão das camadas mais pobres do Brasil. Incomoda. É triste, mas incomoda os pobres estarem ocupando as praças que eram dos ricos, os pobres estarem frequentando os restaurantes, os pobres estarem viajando nos aviões que eles viajavam, os pobres estarem ocupando um espaço de ascensão social que não estava previsto na elite brasileira desde o fim da escravidão. É importante lembrar, para a gente dizer o número correto, é que nesse período nós tínhamos tirado 36 milhões de pessoa da miséria absoluta e tínhamos elevado 42 milhões de brasileiros e brasileiras a um padrão de consumo de classe média baixa. Ou seja, as pessoas passaram a gostar de si mesmas. As pessoas passaram a estudar. Você acha que as meninas pobres do ProUni (Programa Universidade para Todos) eram tratadas com deferência nas universidades? Não eram, não! Outras meninas, ao invés de ficarem orgulhosas de terem uma pobre na sua sala, às vezes tinham raiva. Você acha que as pessoas gostavam de a gente financiar o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil)? Não, só quem recebia gostava. Você acha que as pessoas gostavam de eu ser um cara que só tem o quarto ano primário e ser o presidente que mais fez universidades na história deste país, que mais cuidou do ensino fundamental, que mais cuidou do ensino técnico neste país? Você acha que eles admitiam isso com facilidade? Então, eu penso que esse preconceito e essa coisa de não deixar o PT voltar para não permitir mais a continuidade da ascensão social… Eles sabiam que, comigo, a coisa iria acontecer. Eu voltaria muito mais calejado, muito mais preparado. Porque uma coisa sobre a qual você deve se informar, até para me ajudar, é a seguinte: por que os empresários, até julho de 2014, faziam procissão, faziam fila no Instituto (Lula), para pedir para eu ser candidato à Presidência da República?

Por quê?

Ora, porque eles sabiam o que tinha acontecido no meu período de governo. Eles sabiam o quanto eles tinham ganho. Eles sabiam o quanto foi bom para a economia brasileira, o quanto foi bom para a indústria naval, o quanto foi bom para a Petrobras, o quanto foi bom para a indústria de etanol, o quanto foi bom para o pequeno e médio investidor. Eles sabiam disso. Depois que eu disse que não queria ser candidato, porque era um direito da Dilma ser candidata, essa gente bandeou, e não para o PT: essa gente bandeou para os tucanos.

Foi um grande erro do sr. não ter sido candidato em 2014.

Pode ter sido um erro meu, mas foi um erro em respeito ao direito da Dilma. Tinha muita gente que queria que eu fosse candidato, e eu dizia o seguinte: ela é a presidenta, ela tem o direito de querer ser candidata. A única chance de eu ser seria se ela tivesse me procurado e falado: “Presidente Lula, eu acho que você deveria voltar”Fora disso, não tinha hipótese.

A presidente Dilma disse que o sr. deveria ter pedido a ela para ser candidato.

Veja, é uma interpretação dela, porque seria muito difícil eu chegar na Dilma, no Palácio do Planalto, na mesa da presidenta, e falar: “Presidenta, saia que é minha vez agora!”Você acha que eu ia fazer isso? Jamais. Eu aprendi a respeitar, e achava que a Dilma tinha o direito de pleitear o segundo mandato.

Presidente, eu queria falar do desenvolvimento da sua filosofia política. O sr. teve uma infância pobre e, antes de chegar ao poder, o sr. tinha preocupação com a questão da fome, de os brasileiros fazerem três refeições por dia.

É importante lembrar o seguinte: eu não gostava de política, até 1978. Eu não gostava de sindicato até 1968, quando eu fui e fiquei sócio do sindicato de São Bernardo do Campo. E o que me fez ficar sócio foi uma agressão que meu irmão Frei Chico sofreu numa discussão, numa assembleia. Aí, eu entrei no sindicato. Eu dizia – olha como eu era ignorante! – o seguinte: Eu não gosto de política e não gosto de quem gosta de política. Isso em 1978. Aí vieram as greves, as coisas foram crescendo. O (Ernesto) Geisel mandou uma proposta de lei proibindo as categorias essenciais de fazerem greve: bancário, posto de gasolina, não podiam fazer greve. Aí, fui a Brasília. Quando eu cheguei a Brasília, descobri que não tinha trabalhador! Eu conversava com os deputados. Entre 513, havia dois trabalhadores: Benedito Marcílio, metalúrgico de Santo André, e Aurélio Peres, metalúrgico de São Paulo. Só dois. Voltei pra casa pensando: “Como é possível eu querer que a classe trabalhadora tenha direito, se a grande maioria que está lá não tem a ver com a classe trabalhadora?” É o que eu acho que, até hoje, os eleitores têm que perceber. Se o eleitor se lembrar em quem ele votou na última eleição, vai perceber por que eles querem fazer a destruição da Previdência Social. Veja que absurdo: eu, que em junho dizia que não gostava de política nem de quem gostava de política, em setembro estava fazendo campanha para o Fernando Henrique Cardoso ser candidato ao Senado, porque tinha sublegenda e ele disputava com Franco Montoro. E a gente achava o Fernando Henrique Cardoso mais progressista. Tinha voltado acho que do Chile ou da França — sei lá onde ele morava. Então, um grupo de sindicalistas procurou o Fernando Henrique Cardoso, fomos apoiá-lo. E fizemos com que o Dr. Maurício (Soares), que era nosso advogado em São Bernardo, fosse suplente do Fernando Henrique Cardoso. Ele perdeu, até para o Claudio Lembo. Ele perdeu para o Montoro, mas o Claudio Lembo foi o segundo. E o Fernando Henrique Cardoso ficou (como suplente) até assumir. Quando ele assumiu – o Montoro foi eleito em 1982 –, o Fernando Henrique Cardoso mudou de posição, e o PT já existia.

O sr. viu que era importante fazer um partido político?

Eu cheguei à conclusão de que, se nós quiséssemos mudar a história do Brasil, nós tínhamos que criar um partido político, criar um partido político em que a classe trabalhadora dirigisse esse partido político, em que a classe trabalhadora, junto com outras pessoas, fizesse o programa desse partido. E foi importante porque a gente juntou não apenas o que tinha de melhor no movimento sindical: a gente juntou o que tinha de melhor na esquerda brasileira, o que tinha de melhor na intelectualidade, o que tinha de melhor na igreja progressiva, sobretudo com o pessoal da Teologia da Libertação. E a gente juntou muitos estudantes. E o PT virou o maior partido de esquerda da América Latina.

E aí, presidente, o que aconteceu com o Brasil, em termos de união nacional, de coesão nacional e de mobilidade social durante o seu governo?

Olha, eu duvido… Eu não conheço que tenha tido na história do Brasil um governo mais plural do que o meu, e mais participativo, do ponto de vista da democracia. Eu tinha muitos ministros que não tinham nada a ver com o PT, muitos ministros. Figuras importantes, como Celso Amorim, não eram do PT…

Da elite?

… Como Furlan, que não era do PT. Miguel Jorge não era do PT. Márcio Thomaz Bastos não era do PT. Tinha muita gente importante que não era do PT, fora outros nomes. Ou seja, com o que eu tinha preocupação? Eu não tinha sido eleito para governar para o PT, eu tinha sido eleito para governar para a sociedade brasileira. É por isso que eu dizia: “Eu vou governar para todos. Agora, as pessoas têm que saber que no meu governo nós temos um olhar preferencial para os mais pobres”.

Presidente, foi um erro ter feito um governo de conciliação com as elites?

Eu não acho que eu fiz um governo de conciliação. Na verdade…

O sr. diz que todo mundo ganhou…

Isso é bom. Só não pode todo mundo ganhar num jogo de futebol. Um tem que ganhar ou, no mínimo, empata. Veja, eu tinha um país esfacelado. Vamos lembrar quando eu cheguei, pela eleição, à Presidência da República. O Brasil era desacreditado a nível internacional; o (ministro da Fazenda Pedro) Malan todo ano ia pedir dinheiro para fazer o fechamento do caixa; o Brasil devia ao FMI; o Brasil não tinha dinheiro para financiar as suas exportações. E o Brasil tinha uma dívida com o FMI. O que nós fizemos? Nós reconquistamos a credibilidade. O Brasil saiu de 60 bilhões de exportação para 480 bilhões de exportação. Não é pouca coisa. Nós criamos uma série de instrumentos, o que fez o Brasil ir ganhando confiança, e ganhando confiança, e crescendo, e crescendo. E eu tinha certeza de que o Brasil só ia crescer quando mais da metade da população começasse a consumir. Aquela ideia minha de que muito dinheiro na mão de pouca gente é concentração de renda e pouco dinheiro na mão de muitos é distribuição de renda.

E hoje a miséria está crescendo no Brasil.

Foi com essa filosofia que eu resolvi governar o Brasil, ou seja, se cada pobre comer dois pãezinhos e tomar dois cafezinhos, se cada um comprar um sapato, uma camisa, uma calça, um tijolo a mais, a economia começa a funcionar. Eu não esqueço nunca quando eu tomei a decisão de fazer o “puxadinho”, de financiar “puxadinho”: o cara construir um banheirinho a mais, o cara construir uma garagem a mais, o cara construir um quarto a mais. Na filosofia de quem é ministro da Fazenda, é impensável pensar política assim! Porque essa política não se ensina em Harvard, essa política não se ensina na Unicamp, essa política não se ensina na USP. Essa política a gente aprende é sobrevivendo no dia a dia.

É um erro o Bolsonaro delegar tanto poder ao Paulo Guedes e à equipe econômica?

Depois eu vou falar do erro do Bolsonaro. Eu queria só completar essa coisa da política pequena. Na medida em que nós colocamos milhões de pessoas para participar do processo com o Programa Luz para Todos… As pessoas não falam, Kennedy, mas foram 4 milhões de ligações, envolvendo quase 15 milhões de pessoas, que passaram a comprar televisão, a comprar geladeira, a comprar liquidificador, a comprar bomba d’água, a comprar casa de farinha. E o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), que era para financiar a agricultura familiar, para financiar o cara que produzia. Eram milhões e milhões de pessoas trabalhando. O Mais Alimentos. Quando veio a crise – diziam que era porque a China estava consumindo tudo –, nós criamos o Programa Mais Alimentos para financiar máquinas, implementos agrícolas e tratores de até 80 cavalos. Foi esse programa que salvou a indústria automotiva do Brasil em 2008 e 2009, meu caro. A bancarização no Brasil? Você sabe quantas pessoas tiveram acesso a banco no meu governo? Foram 70 milhões de pessoas! Sabe o que significa 70 milhões de pessoas? A Argentina e a Colômbia juntas, no sistema financeiro brasileiro.

É um terço da população hoje.

Você vê uma pessoa catadora de papel acabar de vender o papel e ir à Caixa Econômica Federal para depositar seu dinheiro. Para nós, que temos conta bancária — eu não tenho agora porque o Moro bloqueou tudo —, a pessoa sente um orgulho! Aquela conta bancária para aquela pessoa que depositou 30 reais é um orgulho! As pessoas choravam na porta da Caixa Econômica Federal! Então, o que ficou provado para mim? Pobre não é problema; pobre é solução, quando você o inclui e o transforma em sujeito da história. Foi o que nós fizemos. Bem, Bolsonaro…

Fale do Bolsonaro.

Veja, eu não vou fazer julgamento do Bolsonaro, porque ele só tem quatro meses de mandato. Acho que ele tem um início de mandato extremamente desastroso. A impressão que eu tenho é que ele não sabe “lé com cré”. A impressão que eu tenho é que ele não tem noção das coisas que fala. Ele não conhece nada de política externa, ele não conhece nada de economia. Ele faz questão de mostrar que não conhece! Veja, ele delegou ao Guedes para fazer a questão da economia. A questão da economia não é apenas uma questão econômica: a economia é uma questão política. O governo tem que decidir quem é que vai ser beneficiado. “Para quem que eu quero governar? Quem é que precisa do Estado?” E como é que funciona a cabeça do Guedes? A cabeça do Guedes funciona… está pensando no mercado. Então, para o Guedes, se vai ter aposentado passando fome, se vai destruir a Previdência Social, pouco interessa. Isso é dado estatístico. O que ele quer é contemplar o mercado.

Mas, presidente, a situação econômica do Brasil é muito mais grave hoje, e o seu governo foi muito ajudado pelo chamado boom das commodities. Nós temos um problema fiscal.

Vamos ver se é verdade isso? Quando eu estive no governo, acho que o dólar era R$ 2,60, e nós exportávamos metade do que exportamos hoje. Hoje nós exportamos o dobro, com o dólar a R$ 4,00.

Mas não é um fato que o boom das commodities ajudou?

Mas valia para mim e valia para todo mundo. Acontece que, com esse ministro de política externa, você não vai para lugar nenhum. Kennedy, preste atenção numa coisa que você não vai ouvir em uma aula de economia. Há duas formas de um país crescer: uma é o mercado interno, é você produzir para o consumo do seu povo; e a outra é você produzir para exportação. Para exportar, você tem uma dificuldade. Primeiro, você tem que ter competitividade. E você tem que ter qualidade e tem que ter preço. O Brasil tem pouca chance de competir com os chamados países industrializados, porque este ano mesmo diminuíram 46% o dinheiro da ciência e tecnologia. Sem investimento em ciência e tecnologia, você não vira competitivo. Então, o que acontece? Você precisa fazer um esforço incomensurável para vender. Você está lembrado o que eu dizia em 2002. O meu ministro da Indústria e Comércio era um mascate: eu quero que ele faça como aqueles turcos que iam na porta da casa da gente vender pano. Ou seja, tem que bater palma na porta de cada país, tem que convencer os países. Eu viajava e levava empresário para tudo quanto é lugar, para vender. Vendia sapato, vendia roupa, vendia tudo. É assim. E é por isso que nós tivemos um crescimento extraordinário, por isso tivemos o crescimento. Agora, quando você tem um governo que começa a brigar com a China, que é o nosso maior parceiro comercial…

E países árabes, Argentina…

… Atendendo aos interesses dos Estados Unidos _e os americanos, por detrás, ganham uma fatia do nosso mercado, vendendo 10 milhões de toneladas de soja para a China no nosso lugar_, quando a gente briga com o mundo árabe, quando a gente briga com o Mercosul, você vai vender para quem? Para os Estados Unidos? Os Estados Unidos não querem comprar soja do Brasil, não querem comprar milho do Brasil, não querem comprar carne do Brasil, porque eles produzem. E também não querem comprar produto manufaturado.

É um erro essa política de alinhamento a Washington?

Totalmente errado. O Brasil é um país grande. O Brasil precisa apenas aprender a se respeitar. O Brasil não tem que se alinhar nem a Washington, nem a Pequim, nem a Moscou, nem muito menos a Frankfurt. O Brasil tem que se apoiar na sua soberania. O Brasil é um país que tem 210 milhões de habitantes. O país tem efetivamente quase tudo que precisa. Tem um potencial intelectual extraordinário! O que o Brasil precisa é para de ser mesquinho. E em tudo que você quer fazer para avançar a sociedade, aparece alguém para dizer: “Não pode, não pode. Não tem dinheiro”. Você sabe o que eu dizia para o meu pessoal? “Gente, é o seguinte, vamos parar de discutir que a gente não pode fazer as coisas e vamos discutir quanto custou ao Brasil não fazer as coisas na hora certa.”

Mas, presidente, hoje a relação entre a dívida pública e o PIB (Produto Interno Bruto) é muito alta.

A tendência é crescer, porque a economia não cresce. Ora, como é que você diminui a dívida pública com relação ao PIB? É você crescendo. Na hora em que você começa a crescer, você diminui a dívida. Se você não investe e não cresce, a dívida aumenta. Agora, veja, quando o país toma a decisão absurda de vender todo o patrimônio construído ao longo da história para resolver a dívida pública, o que vai acontecer? Daqui a alguns meses ou daqui há um ano, a gente não tem mais patrimônio, e a dívida continua. Porque, para resolver a dívida, a economia tem que crescer, o povo precisa consumir, o povo precisa comprar, e o Brasil precisa vender mais lá fora. E para vender lá fora, tem que ter gente vendendo. Ninguém compra do Brasil porque fulano de tal é presidente. Você tem que ir atrás.

O governo Bolsonaro é capaz de fazer isso?

Não acredito. Eu não gosto de fazer julgamento, mas eu não acredito. Obviamente, ele tem quatro anos de mandato pela frente, mas eu não acredito, porque eu penso que ele fez uma opção pela mediocridade.

Presidente, eu quero voltar um pouquinho. Tenho muitas perguntas para fazer. O quanto foi importante para o Brasil ter sido escolhido para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas? O que isso significou?

Vamos separar as duas coisas, porque as Olimpíadas nós brigamos para conquistar. A Copa do Mundo foi uma decisão da FIFA. Como ela tinha decidido fazer um rodízio nos continentes e tinha feito na África do Sul, e no Brasil tinha feito a última em 1950 _o México já tinha feito duas_, então a FIFA decidiu fazer no Brasil.

Mas são eventos globais, não é?

O que eu estou falando é que não houve uma briga no Brasil para fazer. Veio ao Brasil de graça. E eu achava importante, achava extremamente importante. E achava as Olimpíadas extremamente importantes, por isso nós brigamos pelas Olimpíadas. Toda vez que eu vejo alguém falar mal das Olimpíadas, eu queria lembrar o que aconteceu no dia em que foi anunciado o Rio de Janeiro, o que aconteceu em Copacabana. Para o povo do Rio de Janeiro, foi a festa mais extraordinária, foi no dia em que a gente conquistou as Olimpíadas. E aí, houve um processo de destruição da Copa do Mundo. Eu acho que influenciou os jogadores, porque, quando chegou 2014, o clima era um clima de guerra. Como você é um jornalista de muita competência, eu queria pedir a você que fizesse algumas coisas para investigar. Houve um processo de tentativa de destruição, quando se levantaram duas teses: que o dinheiro do país estava sendo gasto na Copa do Mundo, que tinha muita corrupção, e que os estádios no Brasil custavam o triplo do que custavam em qualquer lugar do mundo, ou seja, criou-se uma unanimidade de desconfiança. Estou lhe dizendo isso porque o Itaú era patrocinador, e eu chamei o Roberto Setubal e os diretores dele para conversar: como é que eles estavam tratando a Copa do Mundo, sem fazer a publicidade para convencer a sociedade a aceitar a Copa do mundo? Chamei a Ambev para conversar. “Estão destruindo a Copa do Mundo e vocês são patrocinadores. Vocês não fazem nada!” Chamei o João Roberto Marinho para conversar sobre a Copa do Mundo.“Você é a emissora que vai transmitir. O que vocês estão fazendo?” Conversei com a Dilma, disse que era preciso recuperar a Copa do mundo, porque era só corrupção, só corrupção… inventou-se a ideia do padrão FIFA, e tudo era padrão FIFA, padrão FIFA. Chamei uma pessoa, que você deve conhecer, chamada Valmir Campelo. Era Ministro do Tribunal de Contas da União. Ele foi designado pelo Tribunal de Contas para acompanhar todos os estádios da Copa do Mundo. Eu falei: “Valmir, eu gostaria de saber o seguinte: tem corrupção em algum estádio?” Tem o relatório final do Tribunal de Contas da União. Ele dizia: “Não tem. Não peguei corrupção em nenhum estádio. Teve um probleminha no Rio de Janeiro, que numa reunião com as empresas e o governador foi resolvido”Isso é um dado do Tribunal de Contas da União!

Presidente Lula, foram oportunidades perdidas?

Eu acho que foi, eu acho que foi. Você ter um evento como a Copa do Mundo, em que você poderia vender as coisas boas que este país tinha, e você passou a vender desgraça neste país! Aquela cena da vaia da Dilma na abertura da Copa do Mundo, sinceramente, eu jamais imaginei, jamais imaginei que setores da classe média… porque não era trabalhador. Ali não tinha trabalhador, na abertura da Copa do Mundo, até porque não podia pagar.

Muitos eram chamados de “coxinhas”.

Eu acho que teve muito ingresso dado por empresa. Eu não fui convidado para a Copa do Mundo! Você acredita que eu não fui convidado para a Copa do Mundo? Você pensa que eu não fiquei frustrado, em casa: “Porra, mas nem me convidaram para ir lá?” Eu até repartia a vaia com a Dilma! (Riso). Então, aquilo foi um desastre para o Brasil.

As Olimpíadas também?

As Olimpíadas são diferentes. As Olimpíadas foram feitas com tempo hábil, para que a gente fizesse o que tinha de melhor. Eu lembro de um discurso de quando voltei de Copenhagen, dizendo para os presidentes das federações: “Vocês têm que elaborar um plano de metas para que a gente possa chegar às Olimpíadas com o Brasil virando uma potência olímpica”Agora, isso dependia, na verdade, de quem cuidava do esporte, não do presidente da República. Eu acho que foi uma oportunidade mal aproveitada pelo Brasil. O Brasil já estava tomado de ódio, já estava tomado de uma disputa insana, já estava tomado… isso prejudicou o país. Na verdade, a gente jogou fora essas duas oportunidades.

Esse ponto é importante. Por que aconteceram tantos protestos de rua no Brasil em 2013. E qual foi o real significado daquilo para a política brasileira?

Você sabe que eu acho que até hoje nós não avaliamos corretamente o que aconteceu em 2013. Ninguém me convence de que aquilo foi porque a polícia de São Paulo bateu em uma manifestação de 3 mil pessoas que estavam reivindicando 20 centavos de diminuição no aumento do transporte, e que a sociedade foi para a rua. Não acredito. Aquilo, na minha opinião, já fazia parte da arquitetura política de derrubar o governo, de tirar o PT do poder, porque era uma manifestação muito contra o PT. Nós começamos entendendo que era uma manifestação por reivindicação, e não era por reivindicação. Eu vi alguns vídeos na Internet que tiveram, naquela época, 8 milhões de visualizações, 15 milhões. Ou seja, era uma coisa que só podia ser patrocinada por robô.

O sr. não acha que eram protestos naturais?

Não, não era natural. A Globo jamais cancelaria a grade dela para colocar manifestação. Ela não colocava isso nem no enterro do Roberto Marinho. A Globo cancelou a sua novela para mostrar as manifestações. Você acha que isso é de graça?

Porque era notícia.

Notícia era a campanha das Diretas, e ela nunca suspendeu a novela para mostrar. Na verdade, aquilo era convocado. Era convocado pelo jornal das 8 horas, pelo jornal das 7 horas, por Ana Maria Braga. Era convocado por todo mundo. Era convocado na televisão. Kennedy, é o seguinte…

O sr. não está negando uma realidade?

Não, eu não estou negando uma realidade. A verdade é que, naquele tempo, a economia não estava mal. É importante lembrar que a economia cresceu, eu acho, 1,9% ou 2% naquele ano. É importante lembrar que a gente tinha pleno emprego. Kennedy, a gente não pode esquecer que em 2014 a gente tinha 4,3% de desemprego no Brasil. Você sabe o que significa isso? Significa Finlândia, Noruega, Dinamarca, Suécia, Holanda. O Brasil nunca teve isso. Significa que tinha um crescimento da economia de forma extraordinária. Eram 20 milhões de empregos neste país! Era gente voltando do Japão, era gente voltando de Portugal, era gente voltando de todas as partes do mundo para trabalhar aqui, meu filho. Essa coisa era em 2013.

E por que o governo Dilma, então, fracassou?

Vou tentar mostrar o que eu acho de erro político. Veja, a Dilma utilizou uma política, talvez orientada pela equipe econômica, de desoneração. Eu fiz 47 bilhões de desonerações, na crise de 2008. E na época eu fiquei muito nervoso, porque a indústria automobilística brasileira não tinha nenhuma razão de paralisar. Ela paralisou a pedido das matrizes, porque era preciso sustentar a quebra deles nos países de origem. Eu fiquei muito nervoso, muito. Inclusive tive uma briga muito séria com alguns empresários da indústria automobilística. Pois bem, eu desonerei para tentar recuperar a economia, e no ano seguinte crescemos 7,5%, correto? Não sei se foi a Dilma ou o Guido (Mantega, então ministro da Fazenda), mas, de qualquer forma, o governo começou a fazer uma política de desoneração sem levar em conta, primeiro, o compartilhamento. Se vou desonerar para uma categoria econômica, tenho que conversar com os trabalhadores para saber o que eles vão ganhar. Segundo, tenho que desonerar por um prazo determinado. Não posso desonerar para sempre. Tenho que utilizar aquilo como se fosse o chuveiro da minha casa: eu abro para tirar o sabão e depois eu fecho. Vou controlando aquilo. E nós fizemos 540 bilhões de desonerações entre 2011 e 2014 _não sei se o número é exato.

E acabou com o superávit fiscal.

O problema é que, quando você tem uma torneira enchendo a caixa e tem uma torneira saindo, e a que está saindo sai mais do que entra, uma hora acaba. Quando a Dilma percebeu, quando a Dilma percebeu…

Presidente, mas além do erro na economia, ela cometia erros com o Congresso. Não foi um desastre combinar esse desprezo pelo Congresso, esse erro político, e o erro na economia?

Eu vou falar.

Foi ou não foi? Foi um erro, presidente.

Primeiro, deixa eu terminar só o erro econômico. Quando a Dilma descobriu isso, fez uma medida provisória e mandou para o Senado, para acabar com a desoneração. O que o Senado fez? Devolveu.

Porque ela se relacionava mal com o Congresso.

Pois é, eu comecei a entrevista mostrando a diferença entre o Temer na Presidência da Câmara, no governo Fernando Henrique Cardoso, e o Eduardo Cunha na Presidência da Câmara, no governo da Dilma. Eu… eu gostava de fazer política. A Dilma, certamente, não tinha a paciência que eu tenho. E talvez isso tenha sido… Eu senti isso quando começou o processo de impeachment, que eu fui conversar com deputados e senadores. Eu nunca vi… nunca vi tanta gente falar mal de uma pessoa como as pessoas falavam da Dilma, sabe? Um negócio absurdo! E a Dilma estava recebendo, como informações, mentiras. As pessoas mentem para quem está no governo. Os deputados diziam pra Dilma: “Eu tenho tantos votos. Nós temos tantos votos”, e não tinham.

Mas ela não ouvia as críticas, presidente. Eu conversei com o sr. O sr. tinha críticas à Dilma.

Ouvir, ela ouvia… agora, não basta você ouvir, é preciso você ouvir e mudar de comportamento. A Dilma é uma pessoa por quem que tenho um apreço excepcional. Ela é de convicção muito forte. Ela, às vezes, acha que o medo é que vai fazer as pessoas obedecerem. Uma vez eu falei para a Dilma: Dilma, você tem que aprender a diferença entre um líder e alguém que governa por medo”O cara que tem medo, ele não faz as coisas. O cara faz as coisas se ele tiver prazer. A arte de governar… Eu nunca disse na minha vida: Você sabe com quem você está falando? Eu sou o presidente!”, nunca falei. Não faz parte da minha vida. De vez em quando, eu brigava com meus ministros porque eles iam ler um documento e falavam assim: “O presidente Lula determinou…” E eu falava: “Espere aí, eu não determinei nada, eu pedi”. Esse negócio de determinar… É para mostrar autoridade? Autoridade a gente conquista. E o carinho vale muito mais do que uma bronca. Graças a Deus, eu aprendi a fazer isso muito bem. A Dilma não tinha a mesma paciência que eu. Eu era contra, por exemplo, que a Dilma levasse o (Alexandre) Padilha para o Ministério da Saúde. Eu era favorável a que o Padilha ficasse na organização política. Não tinha ninguém melhor do que ele ali.

O sr. indicou o Luiz Carlos Trabuco, do Bradesco (para ministro da Fazenda). E a Dilma e o (Aloizio) Mercadante (ministro da Casa Civil na época) optaram pelo (Joaquim) Levy.

Eu não indiquei. Deixe-me falar, senão passa uma ideia má. Eu fui conversar com a Dilma, depois da segunda eleição…

O sr. indicou… o sr. sugeriu ou não sugeriu?

Lula– Deixa eu dizer uma coisa… Posso dizer?

Por favor.

Quando a Dilma ganhou o segundo mandato, eu fiquei muito assustado, porque eu estava no dia da apuração no Palácio da Alvorada, assistindo à apuração, e quando terminou a apuração que deu a vitória da Dilma, eu senti no olhar da Dilma, no semblante da Dilma… eu não sei se eu posso falar isso aqui, mas é o que eu sinto: eu senti que a Dilma não estava satisfeita por ter ganho. Eu lembro que ela estava olhando para fora, olhando para o infinito. Eu encostei e ela falou assim para mim: Presidente, eu nunca mais participo de um debate”. E é engraçado porque, intelectualmente, a Dilma conhecia o Brasil na palma da mão, conhecia o Brasil na palma da mão; portanto, a Dilma não tinha que ter medo, ela não tinha que ler nada! Ela praticamente escrevia um livro a cada debate.

Mas ela não era uma boa política.

Então, eu fui convidado a ir à Granja do Torto conversar com ela sobre o governo. Fui dizer para ela o que eu estava pensando que ela deveria fazer. Eu fui dizer para ela que deveria renovar o governo antes do final do ano, não deveria esperar. Fui dizer para ela que seria importante que ela colocasse pessoas que conversassem melhor com o Congresso Nacional. Não posso ficar citando nomes, mas um nome que eu sugeri para ela era que o Jaques Wagner fosse para a Casa Civil, porque o Jaques Wagner é todo cheio de jogo de cintura, tinha sido eleito.

Trabuco na Fazenda…

Eu fui conversar com ela porque o Trabuco tinha sido o cara que mais defendia o governo dela. Tem vários discursos do Trabuco a defendendo. Ela disse que ia conversar com o Trabuco. Que ia não sei para onde, e na volta ia passar e conversar com o Trabuco. De repente, ela volta, e eu vejo pelos jornais que ela chamou o (Joaquim) Levy. Ela não me comunicou que tinha chamado o Levy. Veja, realmente eu sabia o que ela pensava do Levy, porque o Levy trabalhava no Ministério da Fazenda (como secretário do Tesouro na gestão Lula). E eu não entendi ela chamar o Levy, eu não entendi.

O sr. se decepcionou?

Não. Ele não iria para o meu governo (ministério). Mas ela chamou, deve ter alguma razão.  No regime presidencialista, as pessoas… esperam que esteja certo. Eu acho que não deu certo. Ele não a respeitava. As informações que eu tenho do governo são de que ele era sarcástico na relação com ela. E uma pessoa cheia de autoafirmação como a Dilma, na hora em que o carro começa a derrapar, nem sempre tem a tranquilidade de parar e falar: “Peraí, peraí. Vamos parar, vamos ouvir, vamos conversar”. Eu, por exemplo, nas minhas reuniões presidenciais, eu nunca comecei uma reunião falando. Eu convocava a reunião, sentavam lá dez ou doze pessoas, em volta da mesa. E eu dizia: “O problema é esse. Está aberta a palavra. Fala, Kennedy”. E falava todo mundo. Quando todo mundo falava, aí eu falava. Se você é o presidente e começa falando, você não deixa mais ninguém falar, acabou. Ninguém vai falar para contrariar o presidente da República. Então, têm estilos diferenciados. Eu, às vezes, lamento por não ter sido mais incisivo com a Dilma para que ela fizesse algumas coisas. Mas quem está de fora, também, tem que ter muito cuidado. Na verdade, fiz questão _e a Dilma é testemunha disto_ de deixar a Dilma governar do jeito que ela queria, como ela queria, e de levar as pessoas que ela queria para o governo.

Presidente, para muitos brasileiros a corrupção é o maior problema do país. O sr. presidiu o país durante oito anos, tem uma carreira política. Qual é o peso real da corrupção para impedir o progresso do Brasil?

Eu acho que a corrupção tem um peso, mas não é o peso a ponto de atrapalhar o crescimento da economia no Brasil. O que atrapalha o crescimento da economia do Brasil é que o Brasil nunca pensou efetivamente em se desenvolver. O Brasil se contentou em ser o que é, um país para 35 milhões, e o restante que seja número estatístico. É importante lembrar: no meu governo, foi o único momento em que a gente resolveu governar o Brasil para 100% do povo brasileiro. É importante lembrar que todos os instrumentos de combate à corrupção neste país foram feitos nos oito anos (do governo Lula) e nos quatro anos da Dilma… tudo, tudo o que nós fizemos. Até a Lei da Transparência – que você, como jornalista, deve ter ficado muito satisfeito, pois você tinha acesso a qualquer coisa – agora acabou. Imagina se no meu governo o Queiroz estaria desaparecido, imagina?! Eu não vejo a imprensa cobrar o Queiroz mais.

Mas o que tem que ser cobrado do Queiroz?

Cobrado do Queiroz não, ele tem que prestar julgamento (depoimento). Ele foi denunciado. Ele foi denunciado, ele foi acusado! O que eu quero é que esse cidadão seja investigado.

O sr. falou que há dois pesos e duas medidas em relação ao Queiroz, que é suspeito de montar um esquema no qual o filho do presidente Jair Bolsonaro ficaria com parte de salários de deputados (O entrevistador nesta pergunta errou ao falar “salários de deputados”. A suspeita é de que o senador Flávio Bolsonaro, quando deputado estadual no Rio, teria recebido por meio de Fabrício Queiroz, que trabalhou no seu gabinete na Assembleia, parte do salário de auxiliares, prática conhecida como “rachadinha”).

Veja, primeiro, eu não digo antecipadamente que o Queiroz é culpado. O que eu quero dizer _esta é a diferença_ é o seguinte: eu, ex-presidente da República, sofri uma coerção. A Polícia Federal foi à minha casa, entrou na minha casa, levantou o meu colchão, abriu a minha televisão, abriu o fogão, para investigar a minha casa, sem nenhum critério. Eu nunca tinha sido convidado para prestar um depoimento. E, quando acontece com o Queiroz, ele primeiro se recusa a ir. Depois, faz por escrito um depoimento. Estou mostrando a diferença. Segundo, no meu julgamento, qual é o crime que eu cometi? É um fato indeterminado. O sr. Moro reconhece que não tem dinheiro da Petrobras, o sr. Moro reconhece que o apartamento não é meu, mas ele precisava me condenar. A mesma coisa é na acusação. O Dallagnol, depois de ele fazer uma hora e meia de hipocrisia para a mídia brasileira, fala: “Não me peçam provas, eu só tenho convicção”. E por conta disso eu estou aqui, meu filho!

A acusação do apartamento é a seguinte: o sr. foi julgado culpado de aceitar 3,7 milhões de reais em propinas, o que dá 1 milhão e 200 mil dólares, na forma de melhorias em um apartamento que estava sendo construído pela Petrobras (OAS, menção à estatal foi erro do entrevistador) e que o juiz Moro diz que (o apartamento) é do sr., que supostamente é do sr.

Ele não diz isso.

O sr. nega isso. O sr. aceita culpa nesse caso?

Se ele tivesse dito que o apartamento era meu quem sabe eu até tivesse um outro comportamento? Acontece que, depois de fazer a investigação, ele descobriu algumas coisas. Ele descobriu, no processo, que a empresa off-shore­ que ele achou que era sócia da Petrobras e que comprou o apartamento lá do Panamá, essa empresa, na verdade, não tinha comprado um suposto apartamento meu. Essa empresa tinha comprado um apartamento da família Marinho, em Paraty, e tinha comprado o helicóptero da Globo. Era dono disso, e não do suposto apartamento. Segundo, quando eles descobriram isso, a moça foi solta, e não se fala mais nisso. O pretexto de me envolver com a Petrobras era porque havia uma necessidade de me trazer para Curitiba, para a Lava Jato, correto?

Por quê?

Porque aqui é o coração da Lava Jato. Eu não poderia… Tinha que cair na mão do Moro, porque quem fez o pacto com a imprensa… Kennedy, é importante lembrar que o Moro visitou a redação de todos os jornais, de todas as revistas, de todos os canais de televisão. O Moro não precisava ser juiz. Se ele fosse repórter, já valia a condenação, porque a imprensa recebia as acusações antes dos advogados. Hoje, no Brasil, você é condenado pela manchete do jornal, você não é condenado pelo processo. Eu duvido que você encontre na sentença do Moro uma afirmação de que tem dinheiro da Petrobras. Eu duvido que você encontre uma afirmação de que o apartamento é meu. Por que você acha que eu fico bravo? É porque eu não vou morrer antes de provar que o Moro é mentiroso, não vou morrer antes de provar que o Dallagnol é mentiroso, não vou morrer antes de provar que o inquérito contra mim é mentiroso, que a juíza que deu a sentença mentiu a meu respeito, que o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre) mentiu a meu respeito. Por que você acha que eu estou aqui? Por que você acha que eu digo que não troco a minha dignidade pela minha liberdade? De vez em quando, as pessoas falam: Mas agora foi julgado lá, tem a tal da detração, você já pode sair”. Obviamente, quando os meus advogados disserem:Lula, você pode sair”, eu vou sair. Só sairei daqui se qualquer coisa que tiver que se tomar uma decisão não me impedir de continuar brigando pela minha inocência.

Mas a questão da detração, presidente, é um direito que o sr. tem, porque o sr. já teria menos de oito anos de pena e, no regime brasileiro, pode ir para o semiaberto. Como não há vagas, o sr. poderia sair para trabalhar durante o dia e voltar para casa. O sr. vai pedir a detração penal?

Olha, eu só pedirei no dia em que os meus advogados, o Cristiano (Zanin) e o (Roberto) Batochio, disserem para mim: “Presidente Lula, o senhor pode pedir, que, se o senhor pedir, o senhor pode continuar a sua briga pela sua inocência”.

Os advogados já dizem isso.

Os meus advogados não disseram. Hoje vou ter uma reunião com o Cristiano, porque quero entender bem isso. Tem muita gente dando palpite, mas…

Então, vamos ser claros aqui: se os advogados disserem que o sr. pode pedir esse direito e isso significar que o sr. pode continuar dizendo que é inocente, o sr. vai pedir?

Não é só dizendo, não: eu quero continuar provando a minha inocência. Aí eu posso pedir! Olha, se os advogados disserem para mim: “Lula, você pode pedir a detração e você vai continuar brigando pela sua inocência do mesmo jeito que você está”, eu não tenho nenhum problema de pedir, porque quero sair daqui.

O sr. vai pedir ou não vai pedir?

Eu posso pedir.

Pode ou vai?

Posso pedir, se eles me garantirem que eu posso continuar me defendendo.

Seja claro: se eles disserem, o sr. vai pedir?

Peço, peço. Eu quero ir pra casa! Agora, se eu tiver que abrir mão de continuar a briga pela minha defesa, não tenho nenhum problema de ficar aqui.

O sr. falou do ex-juiz Sergio Moro. Nós fizemos um documentário, o What Happened to Brazil?, que em português se chama Brasil em Transe. E o Moro nos respondeu. Até agradeço a carta que o sr. nos enviou, por meio do seu advogado, Cristiano Zanin. Nós tentamos entrevistar o sr. Esta entrevista era para ter sido feita há muito tempo. Estamos fazendo hoje, que é o Dia da Liberdade de Imprensa. O juiz Sergio Moro disse ao documentário, presidente: “O ex-presidente Lula foi condenado por ser o mentor do escândalo da Petrobras. Cerca de 2 bilhões de dólares foram pagos em propinas, usando contratos da Petrobras, durante a sua presidência. O apartamento faz parte de propinas que foram direcionadas para o seu benefício pessoal”. O Moro está certo?

Você sabe qual é a desgraça da mentira? É que quem conta a primeira é obrigado a continuar mentindo a vida inteira, para poder sustentar a mentira. Vou dizer para você: o Moro mente com relação ao meu processo. O Dallagnol mente. Porque, se eles tivessem alguma prova contra mim, eles mostravam. Como é que o Moro me condena por um crime indeterminado? Como é que o Dallagnol pede a minha condenação por convicção? A pessoa tem que ter prova! A pessoa tem que ter prova. Aliás, a Justiça de São Paulo, esta semana, deu ganho de causa para a Dona Marisa no apartamento do Guarujá. O verdadeiro apartamento que ela comprou, as quotas que ela pagou, que ninguém tinha devolvido para a gente. A gente entrou com um processo e ganhamos na Justiça de São Paulo o apartamento. A Dona Marisa ganhou. Depois eu vou mandar darem a sentença para você, para você saber. Eu não sei, eu não sei, Kennedy, quando é que vai haver a retratação, mas eu não quero morrer sem essa gente pedir desculpas ao Brasil pelo que fizeram.

Eu quero ouvir o sr. sobre coisas históricas que tenham a ver com o que aconteceu no Brasil. Por que o sr. concordou em ser ministro da Casa Civil da Dilma e se havia ali uma intenção de evitar ser processado pelo Moro?

Eu aceitei ser ministro da Dilma à meia-noite, quando o Jacques Wagner e o Ricardo Berzoini disseram que, se eu não aceitasse, não tinha solução. Eu disse p

Fonte: Rede Brasil Atual

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