Em tempos de pandemia, o que seria do Brasil sem o Sistema Único de Saúde?

PACTU

Em tempos de pandemia, o que seria do Brasil sem o Sistema Único de Saúde?
Profissionais da Santa Casa (PA) comemoram recuperação de bebê nascido no último dia 18. Para milhões de brasileiros, SUS é único meio de atendimento. Sob o teto de gastos, em duas décadas, perderá R$ 400 bi

Responsável pelo atendimento de mais de 75% dos brasileiros, o SUS, mesmo diante de cortes de investimentos, lidera combate ao coronavírus no Brasil

São Paulo – Muitos brasileiros torcem o nariz quando têm de ir a um posto de saúde ou a um hospital público. E morrem de preocupação de “perder o plano”. O que a maioria não sabe, mas agora pode estar se dando conta, é que se dependesse dos planos de saúde muitos morreriam sem assistência durante a pandemia do novo coronavírus no Brasil. O Sistema Único de Saúde, o SUS, é responsável pelo atendimento de mais de 70% dos brasileiros.

Em março deste ano, somente um em cada quatro dos atendimentos médicos no país ocorreram por meio de planos privados, segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS). Pouco mais de 75% da população brasileira contou exclusivamente com o SUS nesse período. E mais: toda a vigilância à saúde e medidas de contenção do coronavírus no Brasil são feitas pelo sistema público.

Apesar disso, o SUS padece de falta de recursos. Desde a Emenda Constitucional 95, do Teto dos Gastos – que entrou em vigor em 2017 e congelou por 20 anos investimentos em áreas como saúde e educação – o SUS já perdeu mais de R$ 20 bilhões do orçamento federal. Em 20 anos estima-se que desinvestimento pode chegar à casa dos R$ 400 bilhões.

Ainda assim, é esse sistema público, universal e gratuito – o maior do mundo – que mantém o atendimento em 42.826 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) por todo o Brasil e 82,7% da cobertura populacional do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o Samu.

Via SUS são feitas anualmente cerca de 118 mil internações, aproximadamente 100 mil cirurgias, mais de 8 mil partos, 2,7 milhões de consultas, 9,6 milhões de exames ambulatoriais.  

Quando só o SUS salva

A pergunta que não pode calar: se os planos privatistas dos últimos governos, desde o golpe de 2016, tivessem acabado de vez com o SUS, o que teria acontecido nesses tempos de pandemia?

Para o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, deputado federal (PT-SP), o Brasil caminha para ter o maior número de mortes no hemisfério sul. “O povo brasileiro sabe que quem pode reduzir esse sofrimento é um SUS mais forte. O governo federal chegou a colocar à disposição dos planos de saúde um fundo para situações críticas. Não quiseram, porque um dos critérios seria atender quem ficasse inadimplente”, disse, durante debate que reuniu na terça-feira (5) o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ministros da Saúde.

O deputado relatou preocupação com a nomeação do novo ministro da área, Nelson Teich, que não mantém relação com o sistema de saúde público. “Infelizmente até agora sentimos que o ministro não sabe medir a pressão nesse momento muito grave. Torço para que isso mude. Se Boris Johnson (primeiro ministro britânico) mudou, se Trump mudou, torço para que essa crise seja um banho de defesa do SUS para a população brasileira e para o ministro”, destacou Padilha.

“Há leitos privados ociosos”, revelou o ex-ministro da Saúde Humberto Costa. “A epidemia veio por intermédio dos ricos, mas agora atinge a população mais pobre. A maneira mais democrática seria criar uma fila única, como fazemos com a política de transplante. Quem tem mais necessidade ocupa o leito, seja público ou provado. Os hospitais privados teriam de informar às secretarias quantos leitos têm, quantos estão disponíveis, quantos são de UTI, quantos respiradores etc”, cobra o senador (PT-PE).

Autocrítica

Durante o debate que reuniu ainda os ex-ministros Arhur Chioro e José Gomes Temporão, Lula fez o que chamou de autocrítica. Disse que, embora os governos petistas tenham valorizado o SUS, a verdade é que nunca fizeram a defesa ideológica da importância de um sistema único e público de saúde para a população. “Não tivemos capacidade de mostrar tudo que o SUS fazia pelo Brasil país e a imprensa sempre mostrou o lado ruim, das filas, dos problemas de atendimento. Lamentavelmente, não fizemos e muita gente acha que só não atende bem.”

Mas a realidade é que o Brasil tem um sistema de saúde do qual deveria se orgulhar. O SUS é responsável também pelo maior programa público de imunização do mundo. Uma rede pública que oferta todas as vacinas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS): são 27 na cobertura prevista no Calendário Nacional de Vacinação. Mais de 300 milhões de doses de vacina são aplicadas todo ano. Isso inclui os 90,2% de cobertura vacinal contra a gripe.

“A sociedade precisa saber que 95% dos transplantes são feitos pelos SUS”, destacou Lula. Em 2018 foram feitos 26.492 transplantes pelo serviço público.

Temporão lembrou que em abril de 2009, o Brasil e o mundo viveram a pandemia do H1N1. “Os primeiros meses foram muito parecidos pelo medo. Mas o momento político era outro: o presidente dava apoio ao enfretamento à pandemia e o país estava muito bem economicamente. Tínhamos medicamento e hoje não temos. Não há ainda evidencia de que qualquer droga funcione”, afirma o sanitarista que atua hoje na Fiocruz. “Higiene das mãos, isolamento social e uso de máscaras são os únicos instrumentos de combate que temos hoje.”

Falta que faz

Lula destacou que está ficando claro para as pessoas que só o Estado, com o SUS, é capaz de resolver um problema como esse. Levantamento realizado pela Rede Nossa São Paulo em parceria com a Ibope Inteligência e divulgado na terça apontou que 69% das classes média e alta da capital avaliam ser o SUS a estrutura responsável por evitar consequências ainda piores diante da pandemia do novo coronavírus no Brasil.

Arthur Chioro lembra que alguns setores alegavam que as grandes cidades não precisavam do Mais Médicos. “E olhe a falta que faz agora”, disse, ressaltando que crises como essa revelam que não dá certo o enxugamento do Estado, com privatizações de bens públicos e .

“Com o golpe se consolidou um movimento que vinha desde o fim da CPMF, de desfinanciamento do SUS. Os gastos estão em R$ 3 por habitante ao dia”, criticou. “A despeito de tudo isso, nossa situação ainda é muito melhor que países que embarcaram em aventuras e desmontaram todo seu sistema público de saúde.”

O ex-ministro, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que 85% dos casos de covid-19 são assintomáticos ou leves. “E poderiam estar sendo acompanhados com equipes de saúde da família, telemedicina, acompanhamento das casas de idosos. Podemos sair dessa crise reafirmando a importância de ter um SUS que seja valorizado pela sociedade brasileira”, avalia. “O desmonte do SUS só serviu para ampliar uma fatia de mercado que foge da responsabilidade numa hora como essa.”

O século do prejuízo

Temporão reforça. “O SUS foi pensando para atender a todos de maneira igual. Quem quiser um atendimento diferenciado paga do seu bolso e sem incentivo fiscal”, sugere. “Temos de fazer essa discussão na sociedade com seriedade. É inadmissível que a gente não de sustentabilidade financeira ao SUS. Ele é um patrimônio intergeracional.”

São também parte desse sistema público de saúde centros de pesquisa como a Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantã, explicou Temporão. “A Fiocruz está viva, forte e tendo papel importante de enfrentamento”, conta o ex-ministro. “Conseguimos preservar depois do golpe. É ela que está produzindo grande parte dos testes, apesar da falta de investimento. Graças ao Instituto Butantã conseguimos vacinar em 2010 milhões de brasileiros.”

Para o ex-presidente Lula, o século 21 está sendo o século do prejuízo. “Estamos perdendo todo o Estado de bem-estar social construído no século 20. Onde vamos colocar essa quantidade de seres humanos que parecem inúteis diante de carros que andam sozinhos, supermercados sem caixas? Será que vamos passar mais um século com o mercado dizendo como a gente tem de viver?”, questiona, comparando esse quadro ao “ódio destilado contra seu governo. “Isso foi porque pela primeira vez a gente pode garantir que as pessoas tivessem o mínimo de ascensão social.”

Outras visões

Humberto Costa reitera que se prevalecesse a visão de governo de quando foi ministro (2003-2005), hoje haveria mais recursos, teses e leitos para enfrentar a pandemia. “O mundo está parado hoje porque os países não investiram em saúde para poder dar uma resposta. Se temos Samu hoje, as UPAs, a população sendo vacinada, a cidades que ainda têm o Mais Médicos fazendo a diferença, foi porque deixamos para este país um grande legado. Estávamos certos e temos muita coisa positiva para fazer.”

Temporão lembrou que no século 20 ocorreram duas pandemias: a gripe espanhola em 1918 e a asiática em 1950. “Neste século já tivemos cinco. A interferência humana na natureza está por trás de toda essa questão. A probabilidade de que isso que está acontecendo se repita é muito plausível. Temos de repensar o modelo de desenvolvimento econômico”, afirma.

Se fosse hoje ministro, faria parte de um movimento em defesa da vida liderado pelo presidente da República. “Aliando políticas econômicas, sociais, sanitárias para preparar o Brasil para quando toda essa situação passar, e colocando o conhecimento técnico e científico a esse serviço. Mas estamos num vácuo, não temos essa liderança.”

Chioro disse que aproveitaria a coordenação de um presidente que entendesse a importância do SUS, e a partir do enfrentamento da crise deixar como legado um sistema público de saúde como patrimônio da sociedade brasileira. “Todas as áreas juntas construindo estratégia integrada”, explicou.

Padilha, se pudesse fazer uma coisa, seria garantir a proteção aos trabalhadores da saúde e serviços essenciais. “Em várias cidades já não tem profissional para atender. Muitos afastados, infectados, morrendo. Pode ter o que for, mas sem eles nada vai ser resolvido.”

Fonte: RBA-Rede Brasil Atual

Deixar comentário

Matérias relacionadas