Abertura de compras públicas a empresas estrangeiras aumenta vulnerabilidade do Brasil
PACTU
É a primeira vez que se abre a possibilidade nas três esferas de governo; a companhia compradora não precisa ter empresa constituída no País
Em meio à retirada de empresas estrangeiras do País e na contramão da escalada protecionista global, o governo, cada dia mais isolado do resto do mundo, decidiu aumentar a vulnerabilidade da economia nacional ao oferecer as bilionárias compras governamentais nos níveis federal, municipal e estadual a empresas estrangeiras. É a primeira vez que se abre essa possibilidade nas três esferas de governo e sem que a companhia compradora precise ter empresa constituída no Brasil.
“É preocupante, perderemos um dos poucos instrumentos de desenvolvimento tecnológico e produtivo que restavam. As consequências podem ser muito danosas para a indústria brasileira. Vemos agora, no caso das vacinas, o quanto precisamos de capacidade produtiva e de avanços tecnológicos”, lamenta a economista Esther Dweck, professora da UFRJ, que participou, no governo Dilma Rousseff, do Plano Brasil Maior, programa para o aumento da competitividade da indústria nacional com foco tanto nas compras públicas diretas e indiretas, como indutor do desenvolvimento tecnológico, quanto em outras formas de estímulo, por meio do setor privado. Estrangeiras, diz, participavam de processos no Brasil, só que precisavam constituir empresa no País para serem aceitas nas licitações. “Isso sempre foi considerado muito importante porque, na prática, essas firmas acabavam contratando um número relevante de brasileiros e a arrecadação de impostos aumentava”, explica Dweck.
Esther Dweck:”Perderemos um dos poucos instrumentosde desenvolvimento tecnológico e produtivoque restavam”
A primeira oferta brasileira será entregue neste mês, segundo o Ministério da Economia, em continuidade ao pedido do governo, no ano passado, de adesão plena ao Acordo de Compras Públicas da Organização Mundial do Comércio.
A Confederação Nacional da Indústria apoia a iniciativa, mas considera necessário garantir acesso aos mercados dos demais países e assegurar as exceções previstas relacionadas a inovação, tecnologia e pequenas e médias empresas, necessárias à viabilização de políticas industriais e políticas públicas, inclusive na área de saúde.
“Há muitas empresas pequenas e médias totalmente voltadas para o mercado interno e, no caso de abertura das compras a estrangeiras, elas seriam gravemente afetadas”, sublinha Julia Torracca, professora-adjunta do Instituto de Economia da UFRJ.
Para o economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, Rafael Cagnin, “mais importante do que a origem do capital do fornecedor é que o poder de compra estatal considere aspectos que possam reforçar o nosso sistema de inovação, abrindo a possibilidade de contemplar adequadamente propostas de fornecedores que contenham soluções inovadoras e mais bem desenhadas para as necessidades do comprador e usuário”. Segundo a CNI, as compras governamentais movimentam, em média, 12% do PIB dos países e o Brasil, com contratações em torno de 160 bilhões de dólares anuais, está entre os oito principais mercados.
O fato de o País, durante os governos Lula e Dilma, não assinar os tratados da Organização Mundial do Comércio e não aceitar as exigências da OCDE em relação às compras governamentais permitia “impor diversas cláusulas de exigência de contratação de equipamentos brasileiros para desenvolver a indústria e os setores de serviços e de construção, o que dava margem de manobra importante para utilizar o poder de compra do Estado de forma a estimular o desenvolvimento produtivo no Brasil”, sublinha Dweck.
Desde o governo Lula, o setor de óleo e gás contava com a exigência de conteúdo local e ainda com margens de preferência, isto é, o preço máximo que o governo estava disposto a pagar a mais para o produto ser brasileiro, nas compras públicas.
Preço alto, qualidade inferior e prazos de entrega excessivos foram, entretanto, as justificativas do presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, para encomendar, pela primeira vez em muitos anos, a produção integral de plataformas de exploração de petróleo no exterior.
A fabricação da P-78 e da P-79 no País geraria 8 mil empregos diretos e 80 mil empregos indiretos, segundo cálculos do setor. A qualidade das embarcações brasileiras, rebateu o presidente do sindicato dos estaleiros, Ariovaldo Rocha, é reconhecida no resto do mundo, mas diversas obras recebidas do exterior apresentaram sérios problemas técnicos.
Alguns estaleiros receberam prêmios da Petrobras por finalização antecipada de plataformas e vários atrasos resultam de modificações de projeto solicitadas pela própria estatal. Quanto ao preço, diz, é impossível concorrer com o produto asiático subsidiado e apoiado pelo Estado.
A indústria naval brasileira gerou 70 mil empregos diretos e 300 mil indiretos em 15 anos, período muito mais curto do que o do desenvolvimento do setor na Ásia, observou o presidente do Sinaval.
O custo desse retrocesso é elevado. O poder de compra do Estado, destaca Torracca, funciona como “importante antecipador de demanda por meio dos investimentos públicos, além de servir como direcionador e “colchão de segurança” para a tomada de decisões que envolvem risco e incerteza, características típicas da inovação tecnológica”.
Os professores Uallace Moreira, da UFBA, e Nelson Marconi, da FGV, estão entre os poucos economistas a se manifestar nas redes sociais sobre a decisão do governo.
“Ao aderir ao Acordo de Compras Públicas, o Brasil abre mão, como regra geral, do uso de requisito de transferência de tecnologia e conteúdo local em suas licitações”, destacou Moreira. A primeira oferta, diz, está sujeita a negociação e pode ser rejeitada pelos países que são parte do acordo. “Ao declarar que a oferta é ambiciosa, conforme noticiaram os jornais, o governo deu a senha para que os outros países peçam mais. Certamente, a oferta brasileira será rejeitada e entregaremos mais um tanto. Ou seja, ficaremos em uma condição de submissão total.”
Marconi vê a abertura das compras públicas a empresas estrangeiras na OMC como um movimento “na contramão do que os outros países estão fazendo para proteger suas empresas. A compra de insumos nacionais pelo governo é um dos mecanismos mais bem-sucedidos de política industrial”.
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