Aprovação do projeto do ensino em casa destruirá a educação, diz educador
PACTU
O ‘homeschooling’, como é conhecido o projeto, trará prejuízos à educação de crianças e adolescentes, em especial os mais pobres, a médio e longo prazo por eliminar obrigatoriedade de frequentar a escola
Aprovado pela Câmara dos Deputados na quarta-feira (18), o Projeto de Lei (PL) nº 2401/2019, e encaminhado ao Senado para votação, que libera a prática do ensino domiciliar, a médio e longo prazo trará prejuízos severos para as crianças, para a educação e para a sociedade.
As crianças serão privadas de ir à escola, onde têm contato com o que acontece no mundo, aprendem a se sociabilizar e a conviver com outras crianças, com quem trocam experiências. A educação perde em qualidade e verbas que podem ficar ainda mais escassas. E a sociedade perde com a possível alteração no código civil e o consequente fim das punições hoje existentes para pais ou responsáveis por crianças e adolescentes que não estejam frequentando a escola.
Ao eliminar a punição, prevista no Código Penal Brasileiro como crime de abandono intelectual (com detenção de 15 dias a um mês, ou multa), abre-se precedentes para que famílias não mantenham as crianças na escola.
“Isso é prejuízo de imediato para a criança”, diz Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e professor da educação básica no estado de Pernambuco, crítica ferrenho da proposta que, segundo ele, tem o apoio de apenas cerca de 12 mil famílias.
Princípios básicos de uma sociedade desenvolvida, a educação com o acesso à escola é um direito da criança que está sendo fragilizado com essa proposta, que não pode ser aprovada pelo Senado, segundo educadores. A socialização, ou seja, a criança conhecendo o mundo exterior, tendo contato com outras crianças e oportunidades de novas experiências, tem um peso muito grande na formação de uma pessoa, explica Heleno. “Se isso muda, se não há obrigação de estar na escola, o prejuízo é permanente”.
Qualidade da educação em jogo
Outro ponto – não menos importante – é a qualidade da educação pública que estará em jogo. O dirigente afirma que ao longo dos tempos a escola se deteriorará. “Se houver uma parcela da população, de classe média tirando as crianças da escola pública, ela será direcionada aos mais pobres, a quem não tem dinheiro, inclusive com a diminuição de recursos públicos para esses estabelecimentos e isso abrirá caminho para que organizações privadas passem a interferir no ensino público”, avalia o presidente da CNTE.
O projeto prevê, ressalta o dirigente, que para manter uma criança estudando em casa, os pais precisam ter curso superior, por isso, aqueles que optarem pelo método, provavelmente serão indivíduos de maior poder aquisitivo. Como ficarão os mais pobres que não têm curso superior nem dinheiro para pagar uma escola particular, quando os recursos para a escola pública diminuírem?, questiona o presidente da CNTE.
Privatização
Cada aluno matriculado na rede pública de ensino hoje tem um custo para o Estado. É o ‘custo aluno-qualidade’, indicador do quanto deve ser investido ao ano por cada aluno de cada etapa da educação básica, considerando fatores como a manutenção da escola, por exemplo.
Com a educação domiciliar, abre-se precedente para que esses recursos sejam reclamados por quem ficará responsável pelo ensino da criança, ou seja, “as famílias podem reivindicar esses recursos para elas ao invés de serem direcionados para as escolas e municípios”, alerta Heleno.
“Além de corrermos o risco de organizações privadas quererem gerir escolas, haverá um processo de privatização do ensino público se os recursos forem direcionados às famílias e não às instituições de ensino. Privatiza na mão da família”, afirma o dirigente lembrando que as tais 12 mil famílias, aproximadamente, adeptas ao homeschooling já têm poder aquisitivo alto.
Ideologia
Para especialistas e educadores, o projeto vem de encontro – e fortalece – as propostas de uma outra frente ideológica de ataque à educação regular que visa desenvolver o pensamento crítico e democrático, o Escola Sem Partido, conhecido como Lei da Mordaça.
O projeto esteve teve seu auge de debates em 2018, primeiro ano de Jair Bolsonaro (PL) como presidente da República, uma época em que o ódio às ideologias progressistas se aprofundou justamente por ter o ‘capitão’ no poder.
O projeto, discutido tanto no âmbito federal como em diversos municípios, não obteve êxito, mas seu propósito se assemelha à educação domiciliar. “O conceito é o pai, a mãe ter a linha de pensamento do ‘eu que defino meu conteúdo’ e assim, manter a criança e os jovens sem pensamento crítico. É muito ruim para essa juventude e para a sociedade no futuro”, diz Heleno Araújo.
E ele cita o patrono da educação brasileira, Paulo Freire, que também sempre foi alvo de ataques e difamações por parte da extrema direita para falar sobre a importância da liberdade de pensamento. “A educação crítica busca a libertação dos indivíduos e os auxilia na luta pelos seus direitos enquanto cidadãos, para que haja uma sociedade mais justa e democrática” dizia Freire. E é justamente contra isso que a ideologia conservadora luta.
Violência
A data da aprovação do projeto da Câmara, 18 de maio, tem um simbolismo marcante já que neste dia é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. E esse aspecto deve ter atenção máxima da sociedade, diz Guelda Andrade, secretária de Assuntos Educacionais da CNTE.
“Ainda que a realidade é de uma falta de estrutura nas escolas, quando a criança está lá, fica protegida da violência em suas diversas formas, seja a violência das ruas, a violência doméstica e até mesmo a violência sexual. Por isso, abrir caminho para que as crianças fiquem em casa é possibilitar que casos aumentem” diz a dirigente, exemplificando com o aumento de casos durante a pandemia em que as famílias tiveram de ficar em isolamento social.
Dados divulgados pela Pontifica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em junho de 2021, mostram que durante o isolamento, o canal de denúncias de violação aos direitos humanos já havia recebido 25,7 mil denúncias de violência física e 25,6 mil de violência psicológica. Crianças e adolescentes eram 59,6% do total de ocorrências.
Um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Instituto Sou da Paz e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), apontou que o fechamento das escolas foi “vetor da diminuição de denúncias, já que professores frequentemente conseguiam identificar a vítima, além de tomar providências”.
“A escola protege a criança de todas as violências possíveis. O homeschooling coloca em risco a segurança e nega a proteção que é o espaço da escola”, pontua Guelda Andrade.
Retrocesso
Com base em todos os pontos negativos apontados por educadores de todo o país, Heleno Araújo, presidente da CNTE, afirma que a proposta, em questões sociais é uma tragédia. “Só tem retrocessos. “A decisão fica para o adulto impor o que quer e o que pensa para as crianças. É uma interferência no direito de estar na escola, influenciado pela ideologia da família”.
Heleno vai além e diz que o projeto, além de onerar o poder público, já que Estado deixa de fiscalizar o domicílio periodicamente para avaliar a criança, sobrecarregará os profissionais.
“Alguém vai ter que ter tempo para supervisionar, mas a realidade é que o Estado, hoje, não tem controle sobre nem sobre as escolas. E não vai ter controle para supervisionar casa por casa”, ele pontua.
Entrevista
Clique no link para ouvir a entrevista com Heleno Araújo,na edição especial do Jornal de Rádio da CUT desta segunda-feira (23):
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