Artigo: Jabuticabas tributárias e a desigualdade no Brasil
A surpreendente repercussão dos estudos do economista francês Thomas Piketty e do seu bestseller "O Capital do Século XXI" contribuiu para renovar o debate sobre os papéis do imposto de renda não só como ferramenta redistributiva, essencial na construção do Estado de bemestar social das economias desenvolvidas, mas também como instrumento de cidadania quando seus registros de informação são apresentadas de modo transparente à sociedade e permitem diagnosticar melhor suas desigualdades e mazelas sociais. O Brasil ainda engatinha na tarefa de tornar o imposto de renda um tributo progressivo e abrangente, mas felizmente tem avançado no quesito transparência.
Os dados das declarações de imposto de renda das pessoas físicas entre 2008 e 2014, recentemente divulgados pela Receita Federal do Brasil, são um presente à democracia porque nos ajudam a conhecer melhor nossa distribuição de renda e riqueza e, ao mesmo tempo, o efeito concentrador de algumas peculiaridades (ou jabuticabas) do nosso sistema tributário. Vamos a uma síntese desses dados:
1) Somos uma das sociedades mais desiguais do planeta. O
topo da pirâmide social, formado por 71.440 pessoas com renda mensal superior a 160 salários mínimos (ou R$ 1,3 milhão anuais), totalizou rendimentos de R$ 298 bilhões e patrimônio de R$ 1,2 trilhão em 2013. Isto equivale a uma renda média individual de R$ 4,17 milhões e uma riqueza média de R$ 17 milhões. Essa minúscula elite (0,3% dos declarantes ou 0,05% da população economicamente ativa) concentra 14% da renda total e 22,7% de toda riqueza declarada em bens e ativos financeiros. Se adicionarmos a renda e o patrimônio dos que ganham acima de 40 salários mínimos mensais ou R$ 325 mil anuais (0,5% da população ativa), já chegaremos a 30% e 43% dos totais.
A reintrodução da tributação sobre dividendos contribuiria muito mais com o ajuste fiscal.
2) Nossos extremamente ricos apresentam elevadíssima proporção de rendimentos isentos de imposto de renda. Da renda desse estrato, apenas 34,2% são tributados (incluindo aqueles rendimentos tributados exclusivamente na fonte) e os outros dois terços R$ 196 bilhões com média individual de R$ 2,7 milhões são isentos de imposto pela nossa legislação. Este percentual de isenção, em relação à renda, é de 23,8% para os demais declarantes e de apenas 8,3% para a imensa maioria, aqueles que receberam abaixo de cinco salários mínimos mensais (ou R$ 40,7 mil anuais) em 2013.
3) O topo da pirâmide social paga menos imposto, proporcionalmente à sua renda, do que os estratos intermediários. Em média, o declarante do estrato extremamente rico paga 2,6% de imposto sobre sua renda total (ou 6,4% com estimativa de retenção exclusiva na fonte), enquanto o estrato intermediário com rendimentos anuais entre R$ 162.720 e R$ 325.440 (20 a 40 salários mínimos) paga 10,2% (11,7% com retenção exclusiva na fonte). Ou seja, nossa classe média alta principalmente a assalariada paga mais imposto do que os muito ricos.
4) Essa distorção se deve principalmente a uma jabuticaba da legislação tributária brasileira: a isenção de lucros e dividendos pagos a sócios e acionistas de empresas. Dos 71.440 super ricos que mencionamos, 51.419 receberam dividendos em 2013 e declararam uma renda média de R$ 4,5 milhões, pagando um imposto de apenas 1,8%sobre toda sua renda. Isso porque a renda tributável desse grupo foi de R$ 387 mil em média em 2013, a renda tributável exclusivamente na fonte R$ 942 mil e a renda totalmente isenta R$ 3,1 milhões.
A justificativa para esta isenção é evitar que o lucro, já tributado ao nível da empresa, seja novamente taxado quando se converte em renda pessoal, com a distribuição de dividendos. Antes que o leitor formule sua opinião derradeira sobre essa questão, uma informação adicional: entre os 34 países da OCDE, que reúne economias desenvolvidas e algumas em desenvolvimento que aceitam os princípios da democracia representativa e da economia de livre mercado, apenas três isentavam os dividendos até 2010. México retomou a taxação em 2014 e República Eslováquia em 2011, por meio de uma contribuição social. Restou somente a Estônia, que, assim como o Brasil, isenta totalmente os dividendos.
Em média, a tributação total do lucro (integrando pessoa jurídica e pessoa física) chega a 43% nos países da OCDE (sendo 64% na França, 48% na Alemanha e 57% nos Estados Unidos). No Brasil, com as isenções de dividendos e outras jabuticabas tributárias (como os juros sobre capital próprio, que reduzem a base tributável das empresas), essa taxa cai abaixo de 30%, embora formalmente a soma das alíquotas de IRPJ e CSLL seja de 34%. Basta analisar alguns balanços de grandes empresas brasileiras para verificar essa realidade.
Em resumo, o Brasil possui uma carga tributária equivalente à média dos países da OCDE, por volta de 35% do PIB, mas tributa muito pouco a renda, principalmente dos mais ricos, e sobretaxa a produção e o consumo. E refletir sobre essa distorção é fundamental num momento em que o ajuste fiscal exige escolhas e em que as políticas distributivas por meio do gasto público mostram sinais de esgotamento.
A reintrodução da tributação sobre dividendos, aos moldes do que ocorria até 1995 no Brasil, ajudaria a reduzir as desigualdades de renda no país e contribuiria muito com o ajuste fiscal (cerca de R$ 50 bilhões de receita adicional), com a vantagem de não afetar tanto a já combalida economia brasileira como outras alternativas de aumento de carga tributária. Isso porque a renda de dividendos está concentrada no topo da pirâmide e sua tributação não atingiria os investimentos das empresas, mas apenas uma pequena fração da poupança das famílias mais ricas.
Enfim, o debate está aberto: vamos continuar mantendo jabuticabas tributárias?
Sérgio Wulff Gobetti é doutor em economia e pesquisador do Ipea
Rodrigo Octávio Orair é mestre em economia e pesquisador do Ipea
Fonte: Valor Econômico
Os dados das declarações de imposto de renda das pessoas físicas entre 2008 e 2014, recentemente divulgados pela Receita Federal do Brasil, são um presente à democracia porque nos ajudam a conhecer melhor nossa distribuição de renda e riqueza e, ao mesmo tempo, o efeito concentrador de algumas peculiaridades (ou jabuticabas) do nosso sistema tributário. Vamos a uma síntese desses dados:
1) Somos uma das sociedades mais desiguais do planeta. O
topo da pirâmide social, formado por 71.440 pessoas com renda mensal superior a 160 salários mínimos (ou R$ 1,3 milhão anuais), totalizou rendimentos de R$ 298 bilhões e patrimônio de R$ 1,2 trilhão em 2013. Isto equivale a uma renda média individual de R$ 4,17 milhões e uma riqueza média de R$ 17 milhões. Essa minúscula elite (0,3% dos declarantes ou 0,05% da população economicamente ativa) concentra 14% da renda total e 22,7% de toda riqueza declarada em bens e ativos financeiros. Se adicionarmos a renda e o patrimônio dos que ganham acima de 40 salários mínimos mensais ou R$ 325 mil anuais (0,5% da população ativa), já chegaremos a 30% e 43% dos totais.
A reintrodução da tributação sobre dividendos contribuiria muito mais com o ajuste fiscal.
2) Nossos extremamente ricos apresentam elevadíssima proporção de rendimentos isentos de imposto de renda. Da renda desse estrato, apenas 34,2% são tributados (incluindo aqueles rendimentos tributados exclusivamente na fonte) e os outros dois terços R$ 196 bilhões com média individual de R$ 2,7 milhões são isentos de imposto pela nossa legislação. Este percentual de isenção, em relação à renda, é de 23,8% para os demais declarantes e de apenas 8,3% para a imensa maioria, aqueles que receberam abaixo de cinco salários mínimos mensais (ou R$ 40,7 mil anuais) em 2013.
3) O topo da pirâmide social paga menos imposto, proporcionalmente à sua renda, do que os estratos intermediários. Em média, o declarante do estrato extremamente rico paga 2,6% de imposto sobre sua renda total (ou 6,4% com estimativa de retenção exclusiva na fonte), enquanto o estrato intermediário com rendimentos anuais entre R$ 162.720 e R$ 325.440 (20 a 40 salários mínimos) paga 10,2% (11,7% com retenção exclusiva na fonte). Ou seja, nossa classe média alta principalmente a assalariada paga mais imposto do que os muito ricos.
4) Essa distorção se deve principalmente a uma jabuticaba da legislação tributária brasileira: a isenção de lucros e dividendos pagos a sócios e acionistas de empresas. Dos 71.440 super ricos que mencionamos, 51.419 receberam dividendos em 2013 e declararam uma renda média de R$ 4,5 milhões, pagando um imposto de apenas 1,8%sobre toda sua renda. Isso porque a renda tributável desse grupo foi de R$ 387 mil em média em 2013, a renda tributável exclusivamente na fonte R$ 942 mil e a renda totalmente isenta R$ 3,1 milhões.
A justificativa para esta isenção é evitar que o lucro, já tributado ao nível da empresa, seja novamente taxado quando se converte em renda pessoal, com a distribuição de dividendos. Antes que o leitor formule sua opinião derradeira sobre essa questão, uma informação adicional: entre os 34 países da OCDE, que reúne economias desenvolvidas e algumas em desenvolvimento que aceitam os princípios da democracia representativa e da economia de livre mercado, apenas três isentavam os dividendos até 2010. México retomou a taxação em 2014 e República Eslováquia em 2011, por meio de uma contribuição social. Restou somente a Estônia, que, assim como o Brasil, isenta totalmente os dividendos.
Em média, a tributação total do lucro (integrando pessoa jurídica e pessoa física) chega a 43% nos países da OCDE (sendo 64% na França, 48% na Alemanha e 57% nos Estados Unidos). No Brasil, com as isenções de dividendos e outras jabuticabas tributárias (como os juros sobre capital próprio, que reduzem a base tributável das empresas), essa taxa cai abaixo de 30%, embora formalmente a soma das alíquotas de IRPJ e CSLL seja de 34%. Basta analisar alguns balanços de grandes empresas brasileiras para verificar essa realidade.
Em resumo, o Brasil possui uma carga tributária equivalente à média dos países da OCDE, por volta de 35% do PIB, mas tributa muito pouco a renda, principalmente dos mais ricos, e sobretaxa a produção e o consumo. E refletir sobre essa distorção é fundamental num momento em que o ajuste fiscal exige escolhas e em que as políticas distributivas por meio do gasto público mostram sinais de esgotamento.
A reintrodução da tributação sobre dividendos, aos moldes do que ocorria até 1995 no Brasil, ajudaria a reduzir as desigualdades de renda no país e contribuiria muito com o ajuste fiscal (cerca de R$ 50 bilhões de receita adicional), com a vantagem de não afetar tanto a já combalida economia brasileira como outras alternativas de aumento de carga tributária. Isso porque a renda de dividendos está concentrada no topo da pirâmide e sua tributação não atingiria os investimentos das empresas, mas apenas uma pequena fração da poupança das famílias mais ricas.
Enfim, o debate está aberto: vamos continuar mantendo jabuticabas tributárias?
Sérgio Wulff Gobetti é doutor em economia e pesquisador do Ipea
Rodrigo Octávio Orair é mestre em economia e pesquisador do Ipea
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