O dia em que o frevo virou patrimônio imaterial da humanidade
PACTU
Texto publicado na edição de fevereiro de 2013
Em harmonia frenética, os dançarinos esticam e recolhem pernas e braços, empunham sombrinhas coloridas e arriscam acrobacias. Os foliões parecem ligados no 220 ao seguir o sopro eletrizante de trompetes e trombones, as baquetas atacando o couro da caixa feito metralhadoras, no compasso de tubas e surdos. O sangue parece ferver, e uma corruptela desse verbo batiza o ritmo: frevo. A música e a dança são contundentes e se manifestam tanto na cultura nordestina e do Brasil que acabaram sendo reconhecidas como patrimônio imaterial da humanidade, com a chancela da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
O frevo é o primeiro bem brasileiro que entra na lista representativa da Unesco, depois de passar pelo crivo da convenção realizada em 2003. “Nossas imagens são tão boas que uma delas foi o cartão-postal de feliz 2013 da Unesco. Quer reconhecimento maior?”, comemora Célia Maria Corsino, diretora do Departamento do Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “O frevo está forte e vibrante, e esse reconhecimento o fortalece para enfrentar qualquer outra pasteurização que possa haver no carnaval pernambucano. Afinal, nem só de trio elétrico e escola de samba vive o carnaval brasileiro.”
Para o antropólogo Hermano Vianna, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a importância do título é simbólica. “O registro como bem imaterial apenas reconhece a importância daquela tradição cultural, e toda tradição evolui. E o frevo realmente é uma obra-prima da humanidade. Uma música/dança incrível, que continua evoluindo, vide o Micróbio do Frevo, de Silvério Pessoa, ou sua importância decisiva na criação do ‘passinho’ do funk carioca”, avalia.
Como manifestação cultural, o frevo surgiu no final do século 19, em Recife, em pleno carnaval, como expressão das classes populares, numa época em que a capital pernambucana começava a se urbanizar. O objetivo dos compositores e dos músicos era causar maior animação e efervescência nos quatro dias de folia. Aos poucos, o frevo foi desenvolvendo suas características. De acordo com o historiador José Teles, autor do livro Do Frevo ao Manguebeat, é uma música autenticamente brasileira, pernambucana, e talvez a única que não veio do folclore nem tem origem negra. “É o único gênero popular que não tem música de domínio público, tradicional. Todo frevo tem autor. Só nisso já há uma imensa importância”, diz o pesquisador. “Depois, pelo repertório acumulado nestes cento e poucos anos, torna-se uma música superimportante. O complicado é que só tocam as mesmas músicas. Existe pouco frevo novo, a não ser alguma coisa de Spok. Até porque o instrumental não se faz sem saber música, orquestração. Então fica difícil”, relata.
O ano inteiro
Inaldo Cavalcante de Albuquerque, o Spok, nasceu em Igarassu e foi criado na vizinha Abreu e Lima, na Grande Recife, onde começou a ouvir frevo com o pai boêmio e folião, seu Nilo. Aprendeu a gostar de clássicos criados por compositores como Nelson Ferreira (Evocação Nº 1 e Gostosão) e Levino Ferreira (Último Dia) e os cantores Claudionor Germano e Expedito Baracho. “Eu me encantei com a música, fui estudar e aí, sim, minha vida se tornou mais intensa. Mas, como todo pernambucano, tenho ele presente em minha vida desde muito cedo. Eu tocava frevo quatro dias por ano, hoje vivo de frevo todos os dias”, diz o músico. “Com a orquestra, toco durante o ano inteiro pelo Brasil e pelo mundo, em festivais de jazz e de música instrumental”, comemora.
Existem diferentes tipos de frevo, como explica Spok. “Há o frevo-canção, que tem um bit acelerado, com letra, poesia, com um cantor ou cantora na frente da orquestra; o frevo de rua, instrumental; e o frevo de bloco, executado por uma orquestra de pau e corda – violões, cavaquinhos, bandolins e flautas. Talvez o frevo seja, junto com o choro, a única música instrumental genuinamente brasileira e, sozinho, o único que nasceu para orquestra”, diz. “Moraes Moreira me contou que o trio elétrico de Dodô e Osmar veio do clube Vassourinhas, de Recife, que também passava por Salvador.”
Moraes: “Tive a sorte de fazer sucesso com muitos frevos, como Bloco do Prazer e Festa do Interior” (Foto: Antonio Cesar/Divulgação)
Moraes diz ter se apaixonado cedo pelas orquestras de frevo e, desde que saiu dos Novos Baianos, passou a representar o frevo baiano, com uma influência fortíssima do pernambucano, começando com Pombo Correio. “É o frevo pernambucano com o trio elétrico de Dodô e Osmar. É o metal com o elétrico, mistura fantástica que tenho feito ao longo dos meus trinta e tantos carnavais na Bahia. Sou considerado o primeiro cantor do trio e o frevo está na minha vida. E tive a sorte de fazer sucesso com muitos deles, como Bloco do Prazer e Festa do Interior”, comenta Moraes Moreira.
Falta escola
Jacob do Bandolim, Chico Buarque e Caetano Veloso foram outros três compositores que também criaram frevos, em Sapeca, Frevo Diabo e Frevo Rasgado, como lembra o músico Antonio Nóbrega. Já na década de 1970, Nóbrega gravou dois frevos com o Quinteto Armorial, do qual fez parte. Depois foi o primeiro a incluir violino nos arranjos e, em 2007, no centenário do frevo, lançou dois CDs, um DVD e um espetáculo com o título 9 de Frevereiro. “O ritmo, mais que uma manifestação, é uma instituição cultural, porque se exterioriza através de uma dança, de uma música instrumental e de um gênero cantado. E ainda tem um primo ou prima, que é o frevo de bloco”, define.
Segundo Nóbrega, a música instrumental do frevo requer um compositor-orquestrador. “Não basta ser um cancionetista, e, com isso, não o estou diminuindo. O dançarino de frevo é muito hábil e versátil. É a dança popular mais rica. Por tudo isso, o frevo tem uma grandeza especial e talvez seja a manifestação de dança e música brasileiras que mais nos represente”, comenta. Para ele, no entanto, o ritmo poderia ter um papel mais presente em nossa cultura. “Em São Paulo, Levino Ferreira, Nelson Ferreira e Zumba são desconhecidos e, no entanto, têm uma obra tão rica quanto Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Moacir Santos. Que bom seria se tivéssemos nas nossas instituições ligadas à música um lugarzinho para estudar a obra desse pessoal. A dança poderia ser mais assimilada na educação corporal dos jovens brasileiros”, lamenta.
Essa carência parece já estar sendo enfrentada em Pernambuco, segundo a pesquisadora Mariangela Valença, autora do livro 100 Anos de Frevo – Aula Espetáculo. Seu estudo destaca o Plano de Salvaguarda, feito por vários órgãos oficiais pernambucanos, em parceria com o Ministério da Cultura e o Iphan. O plano inclui a criação do Paço do Frevo, com objetivos como tornar disponíveis documentação histórica, ensino da dança e da música; produzir catálogos para internet, CDs e DVDs; publicar e distribuir livros e reeditar obras raras; criar programas de rádio; e elaborar uma exposição itinerante sobre o frevo para ser levada a instituições educacionais diversas.
“Se não fosse o povo nas ruas, lutando pela sobrevivência desse ritmo frenético, não estaríamos, hoje, comemorando o título de patrimônio imaterial da humanidade. No final do século 19 e início do 20, o frevo era muito marginalizado, desprezado pela elite recifense. Mas o povo, o pai do frevo, não permitiu. E até hoje continua lutando para mantê-lo vivo”, afirma Mariangela. “Todo pernambucano carrega o frevo nas veias e no coração. Então só me resta convidar seus leitores a dar um pulinho aqui, na terra do frevo, e verificar a importância dele”, diz a pesquisadora.
O que é patrimônio imaterial?
A Unesco considera Patrimônio Cultural Imaterial práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais – enfim, elementos representativos do sentimento de identidade de uma comunidade. A Constituição brasileira os destaca como portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da nossa sociedade. “Usando termos simplificadores da Constituição Federal, são modos de criar, fazer e viver e o reconhecimento destaca o bem como sendo importante referencial para a formação da sociedade”, explica o advogado Francisco Humberto Cunha Filho, professor adjunto da Universidade de Fortaleza, no Ceará.
Por meio do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial do Iphan, esses bens culturais vão para os seguintes livros: Registro dos Saberes, no qual serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; Registro das Celebrações, com rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; Registro das Formas de Expressão, em que serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e Registro dos Lugares, com mercados, feiras, santuários e praças, entre outros espaços onde se realizam práticas culturais coletivas.
O reconhecimento também institui, no âmbito do Ministério da Cultura, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, que implemente uma política específica de inventário, referência e valorização do patrimônio. “Desde 2002 trabalhamos na identificação e no reconhecimento das manifestações, celebrações, saberes e fazeres que são patrimônios culturais imateriais. Fazemos o inventário e, a partir dele, podemos fazer o registro. Nossa ação é de apoio à sustentabilidade do bem, são os próprios grupos que vão sendo mobilizados. São ações diferentes de restaurar uma casa”, afirma a diretora do Departamento de Bens Imateriais do Iphan, Célia Maria Corsino.
“Temos mais quatro bens na fila do reconhecimento pela Unesco, entre eles a capoeira, mas só é analisado anualmente um bem por país. E já temos dois bens registrados como patrimônio na convenção: a expressão gráfica e oral dos índios Wajãpi e o samba de roda do Recôncavo Baiano”, diz Célia. Em 2011, o ritual Yokwa, da tribo indígena Enawene-Nawê, do sul da Amazônia, integrou a lista de patrimônio imaterial da Unesco que necessita de proteção urgente.
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